segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Um problema de tradução



Passei por um supermercado chinês, em Lisboa. Como nunca tinha estado em tal tipo de estabelecimento, entrei. Pensei que as minhas refeições frequentes em restaurantes chineses, ao longo de vários anos, seriam um posto fronteiriço seguro entre mim e aquele distante universo gastronómico. Bastou olhar para a primeira escada de prateleiras para compreender que não seria assim. Ainda passei bastantes minutos na loja, olhando com atenção, observando os desenhos indicativos das embalagens com cuidado bem como as manchas de tinta de milhares de caracteres. Nem com todo o meu cuidado e boa vontade consegui traduzir a maior parte das coisas vistas para os meus conceitos de matérias comestíveis.

Não há melhor experiência do que entrar noutra cultura para sentirmos que a maior parte das coisas nos são estranhas. O outro serve-nos sempre como ponto de referência para aquilo que nós não somos. Como não o compreendemos, surge-nos como um pequeno conjunto de estilhaços de caos, uma espécie de não-descrição, que em certa medida nos vai sugerindo aquilo que somos através do que não somos.

Poucos são aqueles que conseguem estabelecer este distanciamento na sua própria cultura. Terá sempre de ser um distanciamento forçado. Olhar para um galão é conhecê-lo. Não conseguimos parar toda a informação que, mesmo sendo silenciosa, nos percorre. Conseguir construir uma barreira entre o nosso conceito de galão e o galão ele mesmo é o princípio dos sábios. No fundo, importa conhecer as coisas como elas são, e não discursos sobre as coisas que decoramos desde crianças, discursos que acabam por moldar a nossa percepção. É muito difícil tornar estranho o que nos é familiar, por uma questão de princípio. Viver um paradoxo não entra na nossa lista habitual de coisas que somos. Assim, passamos a vida a fazer cumprimentos silenciosos, com discursos que são interpretações de outros, a coisas que se nos tornaram familiares tão só por termos decorado e compreendido esses discursos. Ou seja, aquilo que nós somos, aquilo em que nos transformam sempre, é um conjunto de teias de discursos sobre os objectos, sobre os fenómenos, interpretações marchetadas em palavras mesmo sendo reconhecivelmente curtas ou compridas demais. Tornamo-nos os discursos e pensamos que com eles nos tornamos nas coisas, conhecendo-as como nossas, conhecendo-as como se as fossemos.

Por isso, só os sábios podem quebrar discursos, ficando sem nada. (Falo de sábios, enquanto termo genérico, propositadamente). Os sábios, para serem sábios, sabem que nada têm, por isso nada perdem.

No meio deste texto, vou cometer uma heresia. Heresia, mesmo, não falo metaforicamente. Quem for mais sensível a estes assuntos, deverá parar de ler por agora.

Pensei eu se os anjos também não terão olhares que são eles mesmos interpretações sobre as coisas. Coisas superiores às nossas, presumo, desconhecidas dos humanos, talvez, mas não terão os anjos discursos decorados, teias de interpretações sobre os seus fenómenos e os nossos? Será que aquilo que nos vêm transmitindo são as coisas em si mesmas?

Parece-me que, das religiões do Livro, só o Islão terá resolvido este problema em termos filosóficos. O Corão existe desde o princípio dos tempos, não sendo inspirado mas sim revelado. É uma coisa per si, identificável com o Cristo da cultura cristã. Islão significa então submissão a essa revelação, revelação que é a coisa em si transformada em texto recitável.

Voltemos novamente ao oriente. A palavra sânscrita Tathatâ, tem um sentido próximo da nossa palavra “realidade”. Designa o Absoluto, a Verdadeira Natureza de todas as coisas. O termo Tat é a raíz da palavra. Ninguém sabe a sua origem nem o seu primeiro significado A hipótese mais forte é representar o som que os bebés fazem quando apontam uma coisa. O bebé é aquele que está mais próximo do início, não tendo ainda apreendido, ou decorado, discursos sobre os objectos ou fenómenos para os quais aponta. Dessa forma, esse som inicial, será aquele que com maior rigor descreve a coisa em si. Se pensarmos bem nisto, tudo, então, é Tat. Nós próprios somos Tat, bem como todas as nossas referências. Tudo o que é o Outro se diluí nesta pequena palavra levando-nos também a nós para um caldo primordial não-conceptual. Um dos nomes de Buda é Tathâgata, aquele que chegou à Iluminação pela via da Verdade. E a verdade, se olharem bem para a raíz, é Tat, nada mais do que isso.

                                                                      Alexandra Pinto Rebelo

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

O estranho mundo de Assis e as imagens

Não pode deixar de causar espanto a sucessão de fenómenos místicos acontecidos em Assis, no tempo de S. Francisco. É certo que sempre podemos duvidar da sua existência e atribuí-los a invenções movidas pela fé de um ou outro monge justificando os meios com os fins. Mas, de facto, parece-me que qualquer coisa de muito intenso e fora do habitual se passou naquela terra, no séc XIII. Já fui por duas vezes a Assis e, não tendo eu um fascínio particular por S. Francisco (o que poderia influir na minha interpretação), assisti a gestos únicos de devoção e até de comoção religiosa para com o espírito do lugar que muito dificilmente se repetem em qualquer outro templo cristão. Certa vez assisti, por exemplo, na sala onde está o túmulo de Francisco, à entrada de algumas dezenas de turistas japoneses. Já os observei noutros locais e sei como se comportam. São muito educados e respeitadores, calados e reservados em termos de expressões faciais. Todos eles se transformaram quando entraram naquela sala. Houve um não sei quê que os tocou profundamente. Um a um dirigiram a sua face para o local onde está o túmulo e fizeram uma profunda e sentida veneração budista. Nenhum deles fez o gesto do sinal da cruz, não sendo, portanto cristãos. Este facto comoveu-me profundamente. A mim e a alguns portugueses que por ali se encontravam. Parece que o tal espírito do lugar, ou da terra embebida da memória de tudo o que aconteceu, é superior a todos nós cristãos ou não, ao próprio Francisco, à memória dos seus irmãos, ao nosso S. António, dobrando-nos a espinha em posição de prostação, enchendo-nos os olhos de lágrimas como resposta mais imediata e explosiva a algo que nos excede.
No Florilégio, antologia de milagres atribuídos a S. Francisco e aos seus, podemos perceber alguns desses milagres, ou hierofanias que aconteceram no tempo de Francisco. A maior parte, eram experiências intensas, vividas por S. Francisco, S. Clara, por um ou outro irmão. Experiências individuais, portanto. Hoje em dia reconhecemos facilmente os estados místicos que são aí descritos. Mas também existiam as hierofanias partilhadas por um grupo de monges, ou até pelos habitantes de Assis e arredores. Durante alguns anos, a comunicação entre mundos foi intensa, sendo a parte visual muito vívida e importante. Num dos episódios, Francisco visita Clara. Ambos partilham uma refeição quando, conversando sobre Deus, entram em êxtase, com os olhos e as mãos erguidos para o Céu. As pessoas de Assis, desconhecendo o que estava a acontecer, viram todo o convento e o bosque que o circundava, em chamas. "(...) parecia-lhes que um único braseiro ocupava a praça, a igreja, o convento e o bosque." Acorrem todos ao local, na tentativa de apagar o fogo. Quando chegam, vêem apenas Francisco, Clara e os companheiros em êxtase, tendo concluído que se tratava de fogo divino. São inúmeros os exemplos da importância do olhar, em Assis. As hierofanias desenvolviam-se num tecido inseparável de imagem e palavra. Outro exemplo, é o célebre sermão de S. António aos peixes que António Vieira, como bom barroco, construtor de olhares, irá aproveitar para o seu texto. Peixes juntos a outros peixes, escutando um monge que com eles fala, é uma imagem forte que dificilmente se esquece.
Ao contrário do que se pode supor, estes monges, visitados regularmente por anjos e demónios, não se fecham em contemplação. São pessoas de acção. Fazem igrejas, são peregrinos, dão sermões ilustrativos à porta das igrejas.
Assis representa uma nova forma de ser-se cristão. A acreditar-se nos fenómenos místicos, Assis representa, ao mesmo tempo, uma nova forma de comunicação, mais intensa, mais frequente, mais agitada, mais orientada para o visual e para a palavra simples, longe dos grandes tratados filosóficos e do peso teórico de Roma e Bizâncio, longe da grandes revelações divinas, daquelas que faziam livros acabados e, logo, problemáticos.


O quadro acima apresentado é de 1235, do pintor Berlinghieri. Foi feito poucos anos após a morte de Francisco. Obedece a um programa estético bizantino, onde o símbolo é o mais importante na representação. Muito haveria a dizer sobre isto. Quem conhece um pouco a história de Assis compreende que este tipo de representação não coincidia em nada com aquilo que se tinha passado, com aquilo que importava deixar documentado. O fundo dourado, por exemplo, surgia como uma espécie de pano de fundo, de cortina, eliminando todos os conceitos de espaço e tempo, dando um valor mais sagrado à coisa representada. Isso não servia para Assis. Era quase a sua anulação. Aos monges importava-lhes afirmar “foi aqui e agora que isto aconteceu”. Da mesma forma, o desenho austero das figuras, apelando a uma imobilidade simbólica, não se coadunava com a agitação franciscana. Roger Bacon traçará o novo programa estético da Ordem. As suas indicações para a “pintura do natural” constituirá a grande proposta do Renascimento e barroco até à perfeição de Caravaggio.
Giotto será o primeiro a figurar os acontecimentos de Assis. Serve-se da figuração tridimensional, utiliza os gestos correntes, o desenho da arquitectura de uma cidade do séc. XIII e XVI de Itália. Subitamente a pintura é projectada para a vida quotidiana tal como o fora todo o mundo divino.




Alexandra Pinto Rebelo

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

João Damasceno e o Problema das Imagens




Existiu um certo embaraço em relação à construção de algumas imagens desde o início do cristianismo. Essa falta de à vontade teve vários motivos. Entre os principais, encontramos a proibição bíblica "(...) não deves fabricar imagens esculpidas de qualquer coisa semelhante àquelas que estão no céu, acima, ou na terra, abaixo". (Dt. 5,8). Outro motivo forte, era o repúdio completo pelas formas de culto pagãs que atribuiam às estátuas de culto um valor hierofânico, isto é, eram o lugar onde o divino se manifestava activa e quotidianamente.
As primeiras imagens não tinham como objectivo atrair orações ou venerações. O seu objectivo era oferecer uma referência visual a uma história bíblica central para os valores cristãos. A figura do Bom Pastor, por exemplo, não era um retrato de Cristo mas uma metáfora expressando as qualidades de Cristo como condutor de almas. Os cristãos divergiam dos seus vizinhos pagãos por evitarem um certo tipo de imagens, não por evitarem imagens em geral. Quando o retrato sagrado passou a ser uma representação recorrente, o problema voltou a colocar-se de uma forma mais intensa. Como era possível representar a essência de Deus, visto que se tentava representar o irrepresentável?
João Damasceno argumenta então, no séc. VIII, a favor da imagem. Para ele, aquilo que se representa não é a essência de Deus visto que isso é uma impossibilidade. Não se representa o invisível, mas aquilo que se fez visível. De facto, o Deus do Antigo Testamento torna-se carne com Cristo. De alguma forma torna-se Ele Próprio imagem. A proibição do Antigo Testamento refere-se, então, a esse primeiro momento, em que Deus é só essência irrepresentável. Deus não poderá proibir a representação icónica a partir do momento em que se torna visível, perceptível como figura.
Quem negar os ícones, nega, ao mesmo tempo o mistério da encarnação.

O texto de Damasceno irá tornar-se uma referência até ao séc.XV.

                                                                           Alexandra Pinto Rebelo

domingo, 5 de dezembro de 2010

Eça e os sinais de reverência

                                                                                

A maior parte dos portugueses limita-se a ter "conversas de corredor" sobre os autores portugueses no ensino secundário. Não há tempo para se aprofundarem questões, para considerar o escritor uma pessoa inteira e, como tal, nada semelhante a um único bloco coerente. Eça é um positivista, tenta-se retirar disso as provas mais do que batidas em Os Maias e ponto final.

A minha formação universitária é em literatura. Foi só num dos últimos anos do curso que me apresentaram os outros Eça. Aquele inicial, romântico, mais tarde reunido num volume com o cómico título de Prosas Bárbaras; o jornalista que, tendo à porta do prédio o paquete esperando a sua crónica para ser publicada no jornal e que, não tendo nem texto nem ideia do que iria escrever, resolveu arrasar o bei (governante) de Tunes, capital da Tunísia; o jovem viajante, escrevendo páginas emocionantes sobre a sua viagem ao Egipto; o homem religioso que no fim da sua vida escreve sobre a vida de santos.

Há dois momentos da sua vida que considero comoventes para nós enquanto leitores. Leitores sobretudo da personalidade de um escritor. O primeiro momento é descrito por Raul Brandão no seu livro Memórias, ocorrido na viagem que Eça faz ao Egipto acompanhado pelo seu futuro cunhado, o Conde de Resende. Ambos assistem à missa no túmulo de Jesus, em Jerusalém. Eça, profundamente emocionado pela situação, cai de joelhos em reverência. Quando o Conde de Resende levantou os olhos, dois ou três mil peregrinos tinham imitado aquele impulso emotivo, ajoelhando-se da mesma forma.

Outro episódio, mostrando o mesmo sentido de devoção profunda, é nos relatado pelo próprio Eça de Queirós, em In Memoriam, colectânea de textos publicada em 1896 em memória de Antero de Quental. O testemunho de Eça tem o título sugestivo de A um génio que era um santo. Descreve como, andando em Coimbra, ainda estudante, numa noite macia de Abril ou Maio avistou sobre as escadarias da Sé nova um homem, de pé, que falava. "O homem com effeito cantava o Ceu, o Infinito, os mundos que rolam carregados d´humanidades, a luz suprema habitada pela ideia pura(...)". Deslumbrado, o jovem Eça toca o cotovelo de um camarada que lhe murmura entre gosto e pasmo: "- É o Antero!..." Sentados nos degraus da igreja, outros homens embuçados, escutavam, em silêncio e enlevo "como discípulos". "Então, (...) destracei a capa, também me sentei n'um degrau, quasi aos pés de Anthero que improvisava, a escutar, n'um enlevo, como um discípulo. E para sempre me conservei assim na vida."


                                                                                    Alexandra Pinto Rebelo

domingo, 28 de novembro de 2010

Os olhos de Cabíria

É de 1957 o excelente filme de Fellini As noites de Cabíria (no original, Le Notti di Cabiria).


Cabíria vive num dos mundos pelo qual todos nós preferimos passar ao lado. Vive numa casa tosca, num subúrbio inenarrável da cidade de Roma. Prostitui-se, ganhando com isso algum dinheiro que vai pondo de parte. O local onde se mostra, juntamente com outras cúmplices de infortúnio, é um complexo de ruínas do antigo império romano.

Cabíria tem o sonho de encontrar alguém que a ame. Passa, por acaso, num velho teatro que apresenta, nessa noite, um espectáculo de ilusionismo. Cabíria entra e é escolhida por entre o público para ser parte integrante daquilo que se vai passar. Cabíria é hipnotizada, revelando perante uma plateia cheia de desconhecidos, que dela se riem, o seu sonho inocente.

No fim do espectáculo, um homem vem ter com ela. Oferece-lhe um café. O homem, tal como Cabíria, tem um olhar cansado, tão cansado, mas capaz ainda de algum brilho. Começam a encontrar-se com alguma regularidade. Ambos vivem num exílio da sociedade comum, exílio esse escolhido ou não (talvez nem os próprios saibam. E nós, saberemos?). Crescem os sorrisos e o brilho. Ao fim de algum tempo planeiam casar e comprar um pequeno negócio. Cabíria vende a sua casa tosca, levanta todo o dinheiro junto até então. Encontram-se num restaurante agradável fora de Roma, com vista sobre um lago. Cabíria leva um rolo enorme de notas, tornadas em símbolo que se metamorfoseou. Eram elas o resultado da sua vida de excepção, pela negativa, representando agora a base para o início do sonho que se irá cumprir. Mas cumprir-se-á?

O homem sugere-lhe ver o pôr-do-sol à beira do lago (ideia tão antiga esta do Sol se pôr, incorrecta, é certo, mas poética). Leva-a até ao topo de uma arriba. A testa dele sua demasiado. Compreendemos que algo está errado muito antes de Cabíria. Ela tem os olhos ainda cheios de paixão. Escorrega, quase caindo. Nesse momento pressente o que aconteceu, o que acontece, o que vai acontecer. Os seus olhos mantêm a forma da paixão, mas são atravessados de dor, enchendo-se de lágrimas.

Com este texto apenas queria chegar aqui, onde cheguei: a este olhar de Cabíria. É um olhar humano, perfeitamento coadunado ao nosso plano humano. Há uma mulher tornada feliz que, no momento em que pressente a desilusão, junta dois sentimentos díspares no mesmo olhar. No entanto, este olhar também pode ser elevado ao plano civilizacional. Todos nós, os do Sul da Europa, ou de uma forma mais extensa, os do Mediterrâneo, compreendemos bem isto. O olhar de Cabíria são os nossos sonhos interrompidos. O olhar de Cabíria são as ruínas pelas quais passamos diariamente, representando a morte daquilo que foi projectado. Não me refiro só aos sonhos de um cristianismo puro, aos de um Islão doce, aos dos descobrimentos ou àquele do V Império do mundo. Refiro-me também aos sonhos mais práticos e mais recentes de uma sociedade justa, com emprego, baseada no mérito e no humanismo.

Este é o último sonho da Europa que está, agora, pleno das lágrimas de Cabíria. Qual será o final? Não falei dele propositadamente. O do filme é fácil de ver. O da Europa do Sul, logo se verá.

                                                                                                                     Alexandra Pinto Rebelo

sábado, 4 de setembro de 2010

Antiguidade Clássica 1.

Foi-me mostrado, desde sempre, que o mundo clássico, isto é gregos e romanos,  tinha um sentido religioso um pouco perturbador.

Aquela gente, capaz de escrever verdadeiros monumentos tais como a Íliada ou a Eneida, referências literárias de uma Europa que ainda não se cansou de as estudar; capaz de lançar alicerçes fortíssimos tais como o conceito de democracia, os preceitos da filosofia, da história, do direito e tantos outros; poetas-intérpretes tão sublimes da alma humana que, até hoje, ainda usamos os seus mitos como legendas grandiosas da nossa pequenez tais como o "complexo de Édipo", a "caixa de Pandora", o "calcanhar de Aquiles"; artistas tão surpreendentes que, passados quase mil anos de silêncio, conseguem ressurgir em indicações estéticas para o Renascimento... aquela gente, dizia, que fez tudo ou quase tudo em grande o que uma grande civilização pode fazer tinha apenas um instinto religioso primitivo, ramalhete de terrores inspirados pelas severidades atmosféricas e de loucuras desculpadas pelos estados psicóticos induzidos.

Nesta leitura há qualquer coisa, então, que não encaixa.

Não é necessário pensar muito para compreender que a antiguidade clássica foi julgada pelos vencedores, ou seja pelos cristãos. Pela segunda vez na história, reforçava-se a ideia de que só existia um deus verdadeiro. A minha expressão "reforçar a ideia" é, claro, um eufemismo. Existindo só um deus, todos os outros se tornavam falsos, por seu decreto. Os adoradores dos outros, podiam tomar vários adjectivos desde os mais simpáticos como patetas, aos mais benevolentes, como iludidos, até aos mais perigosos, como heréticos. Estes adjectivos mais perigosos eram geralmente acompanhados de uma acusação que levava à morte. O percurso até ela era, geralmente, muito humilhante, perturbador e doloroso.

Pretendo com tudo isto deixar só uma pequena nota, por hoje. em relação à religião clássica.  Aquela gente que a praticava tinha exactamente os mesmos instintos religiosos de todos os povos. Os seus deuses funcionavam tão bem como os de quaisquer outros. Torna-se comovente para nós, hoje, lermos as suas inscrições nos templos. Podermos partilhar dos seus desejos íntimos, do seu louvor, dos seus desabafos para com os seus deuses é uma espécie de benção.

                                                                            Alexandra Pinto Rebelo

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

"Aquilo" e os símbolos


Já conheci pessoas que, por conhecerem meia dúzia de símbolos esotéricos, achavam que tinham chegado a qualquer lado de diferente que não fosse apenas o conhecerem meia dúzia de símbolos esotéricos. Bem pior do que isto, foi já ter conhecido pessoas que, conhecendo meia dúzia de centenas de símbolos esotéricos se deixavam reverenciar pelos outros, aqueles que apenas conheciam um punhado. Mas em todos esses esotéricos superiores, existe um momento de falta de prudência, em que conseguímos ver no seu olhar a desilusão por saberem que, afinal, estão mais longe "daquilo" do que quando começaram. As prateleiras das nossas livrarias estão cheias de livros escritos por estas pessoas. Ser-se considerado um esotérico, em certos círculos, dá prestígio e dinheiro.

Os símbolos esotéricos são, sobretudo, uma linguagem. Tal como todas as linguagens, não são a coisa em si mas antes códigos a que se lhe referem. Antes dos símbolos há que conhecer o seu referente pois, de outra forma, eles não nos servirão para grande coisa. Posso decorar mil palavras de árabe mas se não souber o seu sentido, elas não me servem de nada. Experimente dizer "Salam ali cum" a um falante. Receberá como resposta um sinal facial de espanto e a resposta "Ali cum salam". Se repetir muitas vezes a experiência vai compreender que ali está qualquer coisa de simpático. No entanto, isso não é falar árabe. Pode decorar até várias frases e pronunciá-las a um não falante daquela língua. Verá que o convence com alguma facilidade de que domina uma língua exótica.

Confesso que tenho uma grande dificuldade em relação à linguagem alquímica. Não consigo perceber nada, a nível simbólico, daquilo que se passa. Por vezes pego num livro com uma imagem e começo a descrevê-la a uma amiga que, ao contrário de mim,  parece que fala alquimiano desde que nasceu. A minha performance é mais ou menos assim: "Está aqui um homem com uma espada erguida na mão. Parece que vai matar um ovo grande que está em cima de uma mesa. Não sei porquê, pois o ovo tem aquele ar inocente de todos os ovos e não parece ter feito mal ao senhor. Deve estar muito frio nesta terra. O senhor esqueceu-se e vestiu uma saia curta. Por isso teve de pôr toda a lenha que tinha em casa na lareira e ainda foi pedir mais alguma emprestada aos vizinhos." Estas descrições pertencem ao meu reportório de bom humor. Assemelham-se muito, agora que penso nisso, às descrições do Ocidente feitas pelo chefe índio no livro Papalagui. A minha amiga ri-se porque, ao dominar intuitivamente esta linguagem (e por a conhecer bem por a ter estudado), já não a consegue percepcionar sem um sentido imediato. A minha interpretação literal, acrescentada aqui e ali com um pouco de imaginação, proporciona-lhe um género de humor idêntico àquele com o qual as crianças nos presenteiam. Grande parte do seu encanto, aliás, provem do facto de ainda não dominarem bem os códigos culturais da sua etnia. Desta forma é fácil quebrarem as convenções que para nós já estão completamente adquiridas e mecanizadas, abrindo-lhes uma brecha poética ou humorística.

O melhor do caminho é outra coisa, sendo apenas privilégio de alguns. Refiro-me a conhecer directamente "aquilo" ou os vários "aquilos" que não se conseguem reproduzir com as nossas linguagens habituais. Depois, então, ir reconhecendo os vários símbolos que os tentam exprimir, sendo cada um deles limitado à sua maneira, claro. Se não fossem limitados dar-nos-iam uma representação completa e isso, pela natureza de ambos (do "aquilo" e sua simbolização), é impossível. Depois, então, é deixarmo-nos deliciar com a capacidade que outros antes de nós tiveram na tentativa de exprimir o inexprimível. Lembro-me de certa vez me ter maravilhado por os monges budistas serem chamados de "aqueles que descobriram o caminho de casa". Eu tinha tido aquela sensação sem palavras mas nunca tinha conseguido dar-lhe um nexo semântico e sintáctico.

Com isto tudo não quero dizer que os símbolos devam ser postos de parte. Eles têm o seu lugar. Pertencem ao nosso património cultural, ao nosso património artístico que seria infinitamente mais pobre sem eles. Pertencem ao melhor que o ser humano conseguiu fazer e muitos deles até são o resultado de uniões perfeitas entre mundos que por vezes se tocam. Mas, apesar, de tudo, são apenas símbolos. Trata-se do coração aberto com um canivete numa árvore e não a experiência do Amor em si. O que no fundo quero dizer é que é possível conhecer os "aquilos" directamente sem esperarmos deslumbrados por ouvir os relatos de outros que, a maior parte das vezes, nem lá estiveram. Por muito belas que sejam as imagens que mostram, por muito coerentes que sejam as palavras que usam.

                                                                          Alexandra Pinto Rebelo