domingo, 20 de junho de 2010

Dalila Pereira da Costa. O elogio velado.

Há pessoas que pensam ser natural sabermos umas coisas sobre o mundo. No seu entendimento, já nascemos com isso. Para esses a cultura (num sentido erudito) está assim, ao nível do cabelo louro ou dos olhos castanhos. Tal como se inveja o perfil de um determinado nariz, da mesma forma se alimenta o mau sentimento em relação ao saber do outro.

Só há uns anos consegui perceber o que era a inveja. Sempre me fez confusão ser um pecado mortal. Depois, alguém suficientemente generoso explicou-me que a inveja não era só querer o que o outro tem mas desejar-lhe mal por isso. Ainda hoje, entendendo o conceito, me custa a crer que o processo seja esse. Custa, no sentido de ser tão difícil como uma revelação horrível para a qual não estamos preparados. Há pessoas que querem mal a outras muito simplesmente por estas saberem umas coisas sobre o mundo.

Quando tinha dezoito anos comprei o meu primeiro livro relacionado com esoterismo. Na escola, a propósito de Fernando Pessoa, falara-se muito do Graal. Lembro-me com uma nitidez fotográfica, aproveitando o mote pessoano de sonhos como fotografias, de passar na Avenida de Roma e ver exposto numa montra um livro pequeno cujo título era A Nau e o Graal. A autora, para mim então desconhecida, era uma tal Dalila Pereira da Costa. Entrei na loja. Quando cheguei a casa comecei a lê-lo. Ao fim de poucas frases lidas, compreendi que não conseguia entender praticamente nada do que ali estava.

Foram muitos os livros que adquiri a partir de então, irmãos na temática. Percebia alguma coisa num lado, usava esse conhecimento como instrumento de interpretação para o livro a seguir. Um sentido permaneceu constante ao longo de todo este processo. A ideia de que nenhum livro iria manter-se eternamente resistente a uma interpretação que eu pudesse fazer dele.

Passaram alguns anos até ter voltado à Nau e o Graal. Li-o e compreendi-o. Para aqueles que acreditam na alquimia com metais ou plantas, garanto que existe qualquer coisa semelhante com livros. Só ainda não foi inventada uma simbologia que o ilustre. É necessário começarmos com uma humildade de aprendizes, ter uma certeza (que nos transcende) de que ler nos leva a alguma coisa, conseguir superar as muitas dificuldades do caminho, compreender que não há morte mesmo que percebamos que morremos no fim de alguns livros (não tendo isso a haver com pieguice mas com transformação) e por último, concluirmos que o final do caminho é lermos aquilo que desconhecíamos poder ser lido e não a eles, aos livros, que, afinal constituem somente o melhor dos exercícios. Depois disto dito, que continue a invejar quem o queira fazer.

Comecei este texto por querer falar de Dalila Pereira da Costa. Acabei por dela não dizer nada. Quem sabe da alquimia dos livros reconhecerá ser este o melhor dos elogios.

Alexandra Pinto Rebelo

A descoberta do caminho afectuoso para a Índia

Conheci, há uns anos, em Malta o senhor Ropu. O início da conversa nem começou da melhor forma. Quando lhe perguntei de que país vinha, ele pediu-me para adivinhar. Como ninguém consegue saber ao certo o local de residência de cada um, pensei que ele me convidava a ler os seus traços étnicos, fazendo deles um fio que me conduzisse à sua origem.

Era evidente que se tratava de um indiano com os seus sessenta anos. Não havia dúvidas quanto a isso. O que eu não percebia era porque razão um indiano tinha decidido fazer turismo em Malta. Disse-lhe então as minhas certezas e as minhas dúvidas. O senhor Ropu ficou muito admirado. Nunca ninguém tinha conseguido perceber as suas origens indianas. Geralmente pensavam que ele era italiano. Eu respondi-lhe que para mim era óbvia a associação. Sendo eu de Portugal, de Lisboa, ainda para mais, convivendo lado a lado com tantos indianos, não me poderia enganar.

O senhor Ropu deu um passo atrás, ficou estupefacto, e desabafou para a senhora que o acompanhava: "Olha, são do país que destruiu o Oriente!".

Raramente terei tido um início de conversa tão constrangedor com alguém.

Mas, apesar de tudo, continuámos a falar nesse e nos outros dias que se seguiram. Soube que tinha nascido em Calcutá e que desde há alguns anos residia no Dubai. Falávamos nas diferenças entre o Oriente e o Ocidente. Partíamos de generalizações, comprovadas ou não nas radiografias rápidas que íamos tirando nas nossas conversas.

Certa vez, perguntou-me como era possível os europeus acreditarem num só deus. Nunca ninguém me tinha feito uma pergunta semelhante. Talvez por não estar à espera, soube imediatamente a origem da sua dúvida. Expliquei-lhe que os ingleses, tão bem conhecidos dos indianos, é que acreditavam num só deus. Os países do sul da europa era como se acreditassem em muitos. As nossas igrejas estão cheias de santos aos quais as pessoas oram. Oram a S. António, a Maria, a Santa Rita de Cássia, a S. Bento. Têm uma relação mais próxima com S. Francisco de Assis do que com Deus. Chegam perto das suas imagens e falam com eles. Falam-lhes dos seus problemas, confessam-lhes as suas alegrias. Deus não pode estar presente para todas essas coisas pequenas que formam o nosso dia a dia. Nesse momento, o senhor Ropu parou. Ficou com o olhar fixo em coisa nenhuma e exclamou: "Agora, percebo perfeitamente".

O que o senhor Ropu tinha percebido, no mesmo instante do que eu, era que nós, sul europeus e indianos tínhamos qualquer coisa, afinal, de profundamente semelhante. Tínhamos compreendido que dois sistemas religiosos tão afastados pelas catalogações eram, no fundo, tão próximos, independentemente da forma dos templos, das vestes dos crentes, dos odores particulares, das formas mais arrojadas ou sensaboronas dos deuses ou santos. Tínhamos compreendido que éramos humanos, de uma forma como nunca o tínhamos feito. Éramos da mesma espécie e, apesar de o sabermos racionalmente, nunca o tínhamos sentido.

Quando nos despedimos, o senhor Ropu confessou-me já ter ido, havia bastante tempo, a Goa. Falou-me que ele, indiano de Calcutá, sempre ficara confuso com algumas das atitudes dos goeses. Mantinham os nomes portugueses, guardavam os passaportes lusos com orgulho e muitos deles recusavam até a nacionalidade indiana depois da reintegração na Índia. Sentiam-se portugueses especiais e assim queriam permanecer. Nós sempre detestámos os ingleses, dizia. Era o invasor que tinha de ser expulso a todo o custo. Como era possível que aqueles indianos em particular tivessem aquele tipo de atitudes de afecto por conquistadores europeus? Sempre ficara com esta dúvida de resposta absolutamente inexplicável.

Agora, ao fim de tantos anos, consigo compreender o porquê, disse-me.


Alexandra Pinto Rebelo