sábado, 26 de junho de 2010

Finalmente traduzimo-nos.

Sempre gostei de ver documentários sobre outros povos. Acho-os tão poderosos na nossa transformação como qualquer boa religião.
Há pouco tempo vi um que me surpreendeu em particular. Falava de uma etnia que vivia perto da fronteira de Angola. Ainda preservava os seus costumes mais tradicionais mantendo isso como firme convicção. Às tantas, dei por mim a dialogar com as suas opiniões. A conversa silenciosa permaneceu o suficiente para que me questionasse sobre o facto. Porque razão estaria a prolongar frases, ou a acrescentá-las, áquela gente que eu nunca vira na vida e que é improvável alguma vez ver? Então compreendi.

Há algumas décadas, os documentários sobre etnias eram realizados como qualquer filme ligado à natureza. Um locutor ia para o meio da selva e dizia-nos "Ali estão os leões." Depois, ilustrava-nos de uma forma rápida o seu percurso instintivo. "Os leões ficam a descansar, enquanto as leoas caçam". Era apresentada então a sequência leão a descansar e leoas a caçar. Não existia tradução entre os humanos e os animais. Pertenciam à sua espécie e nós à nossa. Por alguns minutos eles tornavam-se o espectáculo que nós queríamos e conseguíamos ver.
Os outros povos eram entendidos da mesma forma. Um locutor ia para o meio de África e comentava "Aqui estão os pigmeus". Seguindo a mesma receita de ilustração, dizia "Os pigmeus entoam estranhos cânticos na altura das chuvas". Seguiam-se alguns momentos de cânticos comprovadamente estranhos. Os pigmeus eram assim outra espécie de mamíferos, cantando, caçando, indo para a floresta em busca de mel.

Mas alguns de nós, ao ouvimos aquele exotismo de palavras, sempre nos perguntámos que diabo de coisas estariam eles a cantar. Estendendo esta dúvida ao resto do seu tempo incomodava não se compreender as conversas que tinham, as zangas que mostravam (Um pigmeu fica furioso com quê?). Acabavam por ser mais impenetráveis do que leões espalhados pela savana.

O que eu compreendi com aquele documentário recente foi que a nossa televisão mudou. As palavras dos outros povos passaram a ser todas traduzidas. Agora sabemos que as mulheres se queixam do trabalho e da violência dos maridos. Ralham com eles e ameaçam-nos. Sabemos que os homens saem cedo para trabalhar, passando a vida preocupados com a saúde dos animais e com o dinheiro para comprar comida. Sabemos que as crianças recebem palavras que são palavras e são mimos, mesmo que falem de árvores e de cabras. Sabemos que há sempre uma infelicidade escondida e uma alegria eternamente teimosa nos nossos sorrisos.
Sabemos que afinal o que mudou não foi a televisão, mas sim o nosso olhar para com os outros. Somos todos humanos, onde quer que nos encontremos e qualquer que seja a língua que falamos.

Já nos traduzimos querendo isso dizer que já somos os mesmos, em embalagens diferentes.

Alexandra Pinto Rebelo