domingo, 27 de junho de 2010

A Europa vista pelo sonho de Veneza

Piano pianíssimo deslizava sobre as águas a gôndola dos pensamentos. O rosa acrescentado de azul tinha o encanto da primeira névoa que, quando, depois de mortos, envolve o novo céu. Nessa barca parecida com a da morte, os pensamentos não morriam, antes formavam espirais de memórias e cheiros. Memórias dessa cidade com demasiados momentos perfeitos, demasiados momentos juntos uns aos outros, para que não se re-questionasse tudo outra vez. Não era necessário o sossego místico, o desapego ou entrega, enquanto estava deitado nessa barco. Era apenas necessário semicerrar os olhos, respirar e ser. Por isso essa barca se assemelhava a barca dos mortos. Não que atravessasse um rio para outro mundo. Limitava-se a estar sempre no mesmo mundo. Os palácios eram toda a Europa concentrada, sua história, suas convulsões e êxtases, mas disso tudo restando apenas uma presença tocando o amor pelo oriente. A água não tinha o barulho normal que costuma ter a água que bate contra o barco, depressa ascendia em melodia. Melodia rendilhada e silenciosa, trepando pela gôndola, tocando-lhe os dedos, tocando-lhe as vestes, tocando-lhe a cara, tocando-o todo e elevando-o acima da cidade. Os cheiros da fruta e das flores eram a grande Primavera oferecida ao céu. Das estrelas viam-se rosas e narcisos, gotas de orvalho frescas escorrendo pelas cerejas, e as gôndolas tornavam-se cornucópias abundantes, brotando sem fim toda a frescura suave de um canto afrutado. Veneza havia sido criada pelos sonhos do alerquim. E cada gota, cada lágrima era uma flor a abrir. Europa significa apenas memória. Memória colhida num campo de sangue. Memória em imagens de arte e sentimentos velhos. As pontes eram braços estendidos entre vizinhos odiados e amados. Europa eram muitas janelas, muitos tons, muitas músicas, flautas e pianos, lutos e festas dignas de deuses. Não eram óperas encerradas em teatros. Eram óperas de vida. Cada europeu cantava uma área no teatro vazio da sua consciência. Europa era a reviravolta da cornucópia no seu limite quando invadia o céu e ensinava os anjos a cantar. Era a austeridade da pedra e o calor da madeira, nessas voltas, tonturas, ameaças, gritos, lágrimas e esgotamentos.
A gôndola deslizava nessa cidade fantasma. Era uma memória que brotava e encarnava nas cúpulas várias, ovais, redondas, simples, discretas, abóbodas-ovos de explosão aparente mas com a contenção de quem não chora e não se excede na alegria em frente ao público. Piano, pianíssimo, a Europa passava, pelos canais, pelas sombras, pelos crimes, pelos banquetes, passava como uma rainha, deixando atrás de si a água que reflectia os rostos mascarados, em vénia, delicada, triste e digna, enquanto ela passava.

Cynthia Guimarães Taveira

sábado, 26 de junho de 2010

Finalmente traduzimo-nos.

Sempre gostei de ver documentários sobre outros povos. Acho-os tão poderosos na nossa transformação como qualquer boa religião.
Há pouco tempo vi um que me surpreendeu em particular. Falava de uma etnia que vivia perto da fronteira de Angola. Ainda preservava os seus costumes mais tradicionais mantendo isso como firme convicção. Às tantas, dei por mim a dialogar com as suas opiniões. A conversa silenciosa permaneceu o suficiente para que me questionasse sobre o facto. Porque razão estaria a prolongar frases, ou a acrescentá-las, áquela gente que eu nunca vira na vida e que é improvável alguma vez ver? Então compreendi.

Há algumas décadas, os documentários sobre etnias eram realizados como qualquer filme ligado à natureza. Um locutor ia para o meio da selva e dizia-nos "Ali estão os leões." Depois, ilustrava-nos de uma forma rápida o seu percurso instintivo. "Os leões ficam a descansar, enquanto as leoas caçam". Era apresentada então a sequência leão a descansar e leoas a caçar. Não existia tradução entre os humanos e os animais. Pertenciam à sua espécie e nós à nossa. Por alguns minutos eles tornavam-se o espectáculo que nós queríamos e conseguíamos ver.
Os outros povos eram entendidos da mesma forma. Um locutor ia para o meio de África e comentava "Aqui estão os pigmeus". Seguindo a mesma receita de ilustração, dizia "Os pigmeus entoam estranhos cânticos na altura das chuvas". Seguiam-se alguns momentos de cânticos comprovadamente estranhos. Os pigmeus eram assim outra espécie de mamíferos, cantando, caçando, indo para a floresta em busca de mel.

Mas alguns de nós, ao ouvimos aquele exotismo de palavras, sempre nos perguntámos que diabo de coisas estariam eles a cantar. Estendendo esta dúvida ao resto do seu tempo incomodava não se compreender as conversas que tinham, as zangas que mostravam (Um pigmeu fica furioso com quê?). Acabavam por ser mais impenetráveis do que leões espalhados pela savana.

O que eu compreendi com aquele documentário recente foi que a nossa televisão mudou. As palavras dos outros povos passaram a ser todas traduzidas. Agora sabemos que as mulheres se queixam do trabalho e da violência dos maridos. Ralham com eles e ameaçam-nos. Sabemos que os homens saem cedo para trabalhar, passando a vida preocupados com a saúde dos animais e com o dinheiro para comprar comida. Sabemos que as crianças recebem palavras que são palavras e são mimos, mesmo que falem de árvores e de cabras. Sabemos que há sempre uma infelicidade escondida e uma alegria eternamente teimosa nos nossos sorrisos.
Sabemos que afinal o que mudou não foi a televisão, mas sim o nosso olhar para com os outros. Somos todos humanos, onde quer que nos encontremos e qualquer que seja a língua que falamos.

Já nos traduzimos querendo isso dizer que já somos os mesmos, em embalagens diferentes.

Alexandra Pinto Rebelo

domingo, 20 de junho de 2010

Dalila Pereira da Costa. O elogio velado.

Há pessoas que pensam ser natural sabermos umas coisas sobre o mundo. No seu entendimento, já nascemos com isso. Para esses a cultura (num sentido erudito) está assim, ao nível do cabelo louro ou dos olhos castanhos. Tal como se inveja o perfil de um determinado nariz, da mesma forma se alimenta o mau sentimento em relação ao saber do outro.

Só há uns anos consegui perceber o que era a inveja. Sempre me fez confusão ser um pecado mortal. Depois, alguém suficientemente generoso explicou-me que a inveja não era só querer o que o outro tem mas desejar-lhe mal por isso. Ainda hoje, entendendo o conceito, me custa a crer que o processo seja esse. Custa, no sentido de ser tão difícil como uma revelação horrível para a qual não estamos preparados. Há pessoas que querem mal a outras muito simplesmente por estas saberem umas coisas sobre o mundo.

Quando tinha dezoito anos comprei o meu primeiro livro relacionado com esoterismo. Na escola, a propósito de Fernando Pessoa, falara-se muito do Graal. Lembro-me com uma nitidez fotográfica, aproveitando o mote pessoano de sonhos como fotografias, de passar na Avenida de Roma e ver exposto numa montra um livro pequeno cujo título era A Nau e o Graal. A autora, para mim então desconhecida, era uma tal Dalila Pereira da Costa. Entrei na loja. Quando cheguei a casa comecei a lê-lo. Ao fim de poucas frases lidas, compreendi que não conseguia entender praticamente nada do que ali estava.

Foram muitos os livros que adquiri a partir de então, irmãos na temática. Percebia alguma coisa num lado, usava esse conhecimento como instrumento de interpretação para o livro a seguir. Um sentido permaneceu constante ao longo de todo este processo. A ideia de que nenhum livro iria manter-se eternamente resistente a uma interpretação que eu pudesse fazer dele.

Passaram alguns anos até ter voltado à Nau e o Graal. Li-o e compreendi-o. Para aqueles que acreditam na alquimia com metais ou plantas, garanto que existe qualquer coisa semelhante com livros. Só ainda não foi inventada uma simbologia que o ilustre. É necessário começarmos com uma humildade de aprendizes, ter uma certeza (que nos transcende) de que ler nos leva a alguma coisa, conseguir superar as muitas dificuldades do caminho, compreender que não há morte mesmo que percebamos que morremos no fim de alguns livros (não tendo isso a haver com pieguice mas com transformação) e por último, concluirmos que o final do caminho é lermos aquilo que desconhecíamos poder ser lido e não a eles, aos livros, que, afinal constituem somente o melhor dos exercícios. Depois disto dito, que continue a invejar quem o queira fazer.

Comecei este texto por querer falar de Dalila Pereira da Costa. Acabei por dela não dizer nada. Quem sabe da alquimia dos livros reconhecerá ser este o melhor dos elogios.

Alexandra Pinto Rebelo

A descoberta do caminho afectuoso para a Índia

Conheci, há uns anos, em Malta o senhor Ropu. O início da conversa nem começou da melhor forma. Quando lhe perguntei de que país vinha, ele pediu-me para adivinhar. Como ninguém consegue saber ao certo o local de residência de cada um, pensei que ele me convidava a ler os seus traços étnicos, fazendo deles um fio que me conduzisse à sua origem.

Era evidente que se tratava de um indiano com os seus sessenta anos. Não havia dúvidas quanto a isso. O que eu não percebia era porque razão um indiano tinha decidido fazer turismo em Malta. Disse-lhe então as minhas certezas e as minhas dúvidas. O senhor Ropu ficou muito admirado. Nunca ninguém tinha conseguido perceber as suas origens indianas. Geralmente pensavam que ele era italiano. Eu respondi-lhe que para mim era óbvia a associação. Sendo eu de Portugal, de Lisboa, ainda para mais, convivendo lado a lado com tantos indianos, não me poderia enganar.

O senhor Ropu deu um passo atrás, ficou estupefacto, e desabafou para a senhora que o acompanhava: "Olha, são do país que destruiu o Oriente!".

Raramente terei tido um início de conversa tão constrangedor com alguém.

Mas, apesar de tudo, continuámos a falar nesse e nos outros dias que se seguiram. Soube que tinha nascido em Calcutá e que desde há alguns anos residia no Dubai. Falávamos nas diferenças entre o Oriente e o Ocidente. Partíamos de generalizações, comprovadas ou não nas radiografias rápidas que íamos tirando nas nossas conversas.

Certa vez, perguntou-me como era possível os europeus acreditarem num só deus. Nunca ninguém me tinha feito uma pergunta semelhante. Talvez por não estar à espera, soube imediatamente a origem da sua dúvida. Expliquei-lhe que os ingleses, tão bem conhecidos dos indianos, é que acreditavam num só deus. Os países do sul da europa era como se acreditassem em muitos. As nossas igrejas estão cheias de santos aos quais as pessoas oram. Oram a S. António, a Maria, a Santa Rita de Cássia, a S. Bento. Têm uma relação mais próxima com S. Francisco de Assis do que com Deus. Chegam perto das suas imagens e falam com eles. Falam-lhes dos seus problemas, confessam-lhes as suas alegrias. Deus não pode estar presente para todas essas coisas pequenas que formam o nosso dia a dia. Nesse momento, o senhor Ropu parou. Ficou com o olhar fixo em coisa nenhuma e exclamou: "Agora, percebo perfeitamente".

O que o senhor Ropu tinha percebido, no mesmo instante do que eu, era que nós, sul europeus e indianos tínhamos qualquer coisa, afinal, de profundamente semelhante. Tínhamos compreendido que dois sistemas religiosos tão afastados pelas catalogações eram, no fundo, tão próximos, independentemente da forma dos templos, das vestes dos crentes, dos odores particulares, das formas mais arrojadas ou sensaboronas dos deuses ou santos. Tínhamos compreendido que éramos humanos, de uma forma como nunca o tínhamos feito. Éramos da mesma espécie e, apesar de o sabermos racionalmente, nunca o tínhamos sentido.

Quando nos despedimos, o senhor Ropu confessou-me já ter ido, havia bastante tempo, a Goa. Falou-me que ele, indiano de Calcutá, sempre ficara confuso com algumas das atitudes dos goeses. Mantinham os nomes portugueses, guardavam os passaportes lusos com orgulho e muitos deles recusavam até a nacionalidade indiana depois da reintegração na Índia. Sentiam-se portugueses especiais e assim queriam permanecer. Nós sempre detestámos os ingleses, dizia. Era o invasor que tinha de ser expulso a todo o custo. Como era possível que aqueles indianos em particular tivessem aquele tipo de atitudes de afecto por conquistadores europeus? Sempre ficara com esta dúvida de resposta absolutamente inexplicável.

Agora, ao fim de tantos anos, consigo compreender o porquê, disse-me.


Alexandra Pinto Rebelo

domingo, 13 de junho de 2010

Não-contemporâneos.



Podemos partir de qualquer coisa simples como guloseimas.

Fios de pinhões e antigas medidas feitas de madeira para os amendoins e tremoços. Ao lado, as tão nossas contemporâneas gomas, cumprindo o espírito do tempo com cores garridas, açucar exposto sem timidez e aquele toque de língua estrangeira a emprestar um qualquer sabor do Outro.

Não há truque na fotografia, garanto. No entanto, parece haver. É como se um intervalo de cinquenta anos se abatesse, aproximando coisas de tempos distintos. Na lógica que utilizamos diariamente, o tempo sucede-se ao tempo. As coisas que foram já não podem ser. Neste sentido, parece que alguém se esqueceu de informar os vendedores de guloseimas de algo tão fundamental como o conceito de tempo linear. Será mau para o negócio?

Não me parece que seja. Isto leva-me a pensar numa pequena introdução que certa vez li. Tratava-se de uma obra de William Blake onde o escritor de incipit concluia: este homem não foi contemporâneo de ninguém. Esta é uma daquelas frases a que se sorri (é também por estes sorrisos que continuamos, teimosamente, a ler). Sorri-se por nunca a termos estruturado sintacticamente na nossa consciência e, no entanto, corresponder na íntegra a coisas tão intuídas há tanto tempo que, quando ganham forma lexical, são uma evidência nossa. Não nossa, em termos individuais, mas nossa em termos de espécie. Aquele homem, Blake, não foi contemporâneo de ninguém. Pegando nesta chave, podemos começar a abrir portas. Veremos que abre muitas. Também Cesário ou um certo Pessoa eram, de certa forma, não-contemporâneos de todos os que com eles partilharam o seu tempo. A arte atira quem dela se aproxima para fora do tempo comum. É um dos paralelos conhecidos entre arte e misticismo.

Continuando com a mesma chave, podemos alterá-la um pouco. E nós? Será que somos contemporâneos de nós mesmos? Claro que não. Todos nós fazemos, ou dizemos, coisas para as quais não encontramos grande uniformidade temporal. Como caracóis, uso expressões como "torre de cristal", conheço o sentido profundo de peregrinação apesar de nunca ter feito nenhuma, experimento uma forte veneração quando olho o sol -sempre num impulso mais forte do que eu. Mas escrevo na net, sim. Pelo que eu observo, também aqueles que se encontram agora por aqui (esta é uma boa expressão para substituir o termo contemporâneos) têm os mesmos desajustes temporais consigo mesmos. De tantos que são, seria cansativo enumerá-los.

Nós somos um mosaico. Mosaico composto por pequenas peças de tempos distintos. Tempos também de alguma forma influenciados por várias sensibilidades étnicas. Algumas, de tão antigas, nem nome possuem na nossa memória colectiva. Somos uma imensa pasta de várias cores fluindo constantemente. Já os nossos antepassados o eram e com eles transportavam esse mal estar por não se saberem não-contemporâneos de si próprios. Ou, pelo menos, mal estar por não o conseguirem estruturar sintacticamente na sua consciência.

Por tudo isto pasmo quando ouço falar naqueles que, por se terem cansado do mundo contemporâneo, o tentam deixar à porta de casa. Talvez estes sejam aqueles que, ao sentirem que não são contemporâneos de ninguém, se julgam, pelo menos, contemporâneos de si mesmos.
E consigam viver na ilusão de pertencerem a um único tempo completamente delimitado de todos os outros que já o foram e ainda o são...

Alexandra Pinto Rebelo