domingo, 13 de junho de 2010

Não-contemporâneos.



Podemos partir de qualquer coisa simples como guloseimas.

Fios de pinhões e antigas medidas feitas de madeira para os amendoins e tremoços. Ao lado, as tão nossas contemporâneas gomas, cumprindo o espírito do tempo com cores garridas, açucar exposto sem timidez e aquele toque de língua estrangeira a emprestar um qualquer sabor do Outro.

Não há truque na fotografia, garanto. No entanto, parece haver. É como se um intervalo de cinquenta anos se abatesse, aproximando coisas de tempos distintos. Na lógica que utilizamos diariamente, o tempo sucede-se ao tempo. As coisas que foram já não podem ser. Neste sentido, parece que alguém se esqueceu de informar os vendedores de guloseimas de algo tão fundamental como o conceito de tempo linear. Será mau para o negócio?

Não me parece que seja. Isto leva-me a pensar numa pequena introdução que certa vez li. Tratava-se de uma obra de William Blake onde o escritor de incipit concluia: este homem não foi contemporâneo de ninguém. Esta é uma daquelas frases a que se sorri (é também por estes sorrisos que continuamos, teimosamente, a ler). Sorri-se por nunca a termos estruturado sintacticamente na nossa consciência e, no entanto, corresponder na íntegra a coisas tão intuídas há tanto tempo que, quando ganham forma lexical, são uma evidência nossa. Não nossa, em termos individuais, mas nossa em termos de espécie. Aquele homem, Blake, não foi contemporâneo de ninguém. Pegando nesta chave, podemos começar a abrir portas. Veremos que abre muitas. Também Cesário ou um certo Pessoa eram, de certa forma, não-contemporâneos de todos os que com eles partilharam o seu tempo. A arte atira quem dela se aproxima para fora do tempo comum. É um dos paralelos conhecidos entre arte e misticismo.

Continuando com a mesma chave, podemos alterá-la um pouco. E nós? Será que somos contemporâneos de nós mesmos? Claro que não. Todos nós fazemos, ou dizemos, coisas para as quais não encontramos grande uniformidade temporal. Como caracóis, uso expressões como "torre de cristal", conheço o sentido profundo de peregrinação apesar de nunca ter feito nenhuma, experimento uma forte veneração quando olho o sol -sempre num impulso mais forte do que eu. Mas escrevo na net, sim. Pelo que eu observo, também aqueles que se encontram agora por aqui (esta é uma boa expressão para substituir o termo contemporâneos) têm os mesmos desajustes temporais consigo mesmos. De tantos que são, seria cansativo enumerá-los.

Nós somos um mosaico. Mosaico composto por pequenas peças de tempos distintos. Tempos também de alguma forma influenciados por várias sensibilidades étnicas. Algumas, de tão antigas, nem nome possuem na nossa memória colectiva. Somos uma imensa pasta de várias cores fluindo constantemente. Já os nossos antepassados o eram e com eles transportavam esse mal estar por não se saberem não-contemporâneos de si próprios. Ou, pelo menos, mal estar por não o conseguirem estruturar sintacticamente na sua consciência.

Por tudo isto pasmo quando ouço falar naqueles que, por se terem cansado do mundo contemporâneo, o tentam deixar à porta de casa. Talvez estes sejam aqueles que, ao sentirem que não são contemporâneos de ninguém, se julgam, pelo menos, contemporâneos de si mesmos.
E consigam viver na ilusão de pertencerem a um único tempo completamente delimitado de todos os outros que já o foram e ainda o são...

Alexandra Pinto Rebelo