quinta-feira, 26 de agosto de 2010

"Aquilo" e os símbolos


Já conheci pessoas que, por conhecerem meia dúzia de símbolos esotéricos, achavam que tinham chegado a qualquer lado de diferente que não fosse apenas o conhecerem meia dúzia de símbolos esotéricos. Bem pior do que isto, foi já ter conhecido pessoas que, conhecendo meia dúzia de centenas de símbolos esotéricos se deixavam reverenciar pelos outros, aqueles que apenas conheciam um punhado. Mas em todos esses esotéricos superiores, existe um momento de falta de prudência, em que conseguímos ver no seu olhar a desilusão por saberem que, afinal, estão mais longe "daquilo" do que quando começaram. As prateleiras das nossas livrarias estão cheias de livros escritos por estas pessoas. Ser-se considerado um esotérico, em certos círculos, dá prestígio e dinheiro.

Os símbolos esotéricos são, sobretudo, uma linguagem. Tal como todas as linguagens, não são a coisa em si mas antes códigos a que se lhe referem. Antes dos símbolos há que conhecer o seu referente pois, de outra forma, eles não nos servirão para grande coisa. Posso decorar mil palavras de árabe mas se não souber o seu sentido, elas não me servem de nada. Experimente dizer "Salam ali cum" a um falante. Receberá como resposta um sinal facial de espanto e a resposta "Ali cum salam". Se repetir muitas vezes a experiência vai compreender que ali está qualquer coisa de simpático. No entanto, isso não é falar árabe. Pode decorar até várias frases e pronunciá-las a um não falante daquela língua. Verá que o convence com alguma facilidade de que domina uma língua exótica.

Confesso que tenho uma grande dificuldade em relação à linguagem alquímica. Não consigo perceber nada, a nível simbólico, daquilo que se passa. Por vezes pego num livro com uma imagem e começo a descrevê-la a uma amiga que, ao contrário de mim,  parece que fala alquimiano desde que nasceu. A minha performance é mais ou menos assim: "Está aqui um homem com uma espada erguida na mão. Parece que vai matar um ovo grande que está em cima de uma mesa. Não sei porquê, pois o ovo tem aquele ar inocente de todos os ovos e não parece ter feito mal ao senhor. Deve estar muito frio nesta terra. O senhor esqueceu-se e vestiu uma saia curta. Por isso teve de pôr toda a lenha que tinha em casa na lareira e ainda foi pedir mais alguma emprestada aos vizinhos." Estas descrições pertencem ao meu reportório de bom humor. Assemelham-se muito, agora que penso nisso, às descrições do Ocidente feitas pelo chefe índio no livro Papalagui. A minha amiga ri-se porque, ao dominar intuitivamente esta linguagem (e por a conhecer bem por a ter estudado), já não a consegue percepcionar sem um sentido imediato. A minha interpretação literal, acrescentada aqui e ali com um pouco de imaginação, proporciona-lhe um género de humor idêntico àquele com o qual as crianças nos presenteiam. Grande parte do seu encanto, aliás, provem do facto de ainda não dominarem bem os códigos culturais da sua etnia. Desta forma é fácil quebrarem as convenções que para nós já estão completamente adquiridas e mecanizadas, abrindo-lhes uma brecha poética ou humorística.

O melhor do caminho é outra coisa, sendo apenas privilégio de alguns. Refiro-me a conhecer directamente "aquilo" ou os vários "aquilos" que não se conseguem reproduzir com as nossas linguagens habituais. Depois, então, ir reconhecendo os vários símbolos que os tentam exprimir, sendo cada um deles limitado à sua maneira, claro. Se não fossem limitados dar-nos-iam uma representação completa e isso, pela natureza de ambos (do "aquilo" e sua simbolização), é impossível. Depois, então, é deixarmo-nos deliciar com a capacidade que outros antes de nós tiveram na tentativa de exprimir o inexprimível. Lembro-me de certa vez me ter maravilhado por os monges budistas serem chamados de "aqueles que descobriram o caminho de casa". Eu tinha tido aquela sensação sem palavras mas nunca tinha conseguido dar-lhe um nexo semântico e sintáctico.

Com isto tudo não quero dizer que os símbolos devam ser postos de parte. Eles têm o seu lugar. Pertencem ao nosso património cultural, ao nosso património artístico que seria infinitamente mais pobre sem eles. Pertencem ao melhor que o ser humano conseguiu fazer e muitos deles até são o resultado de uniões perfeitas entre mundos que por vezes se tocam. Mas, apesar, de tudo, são apenas símbolos. Trata-se do coração aberto com um canivete numa árvore e não a experiência do Amor em si. O que no fundo quero dizer é que é possível conhecer os "aquilos" directamente sem esperarmos deslumbrados por ouvir os relatos de outros que, a maior parte das vezes, nem lá estiveram. Por muito belas que sejam as imagens que mostram, por muito coerentes que sejam as palavras que usam.

                                                                          Alexandra Pinto Rebelo

Considerações sobre a morte

Num destes dia, andando lentamente ao longo de um passeio, ouvi uma conversa que me surpreendeu. Um indivíduo falava ao telefone com alguém. Esse outro deu-lhe a notícia da morte de um amigo, ou conhecido. Mas o indivíduo estava incrédulo. Uma incredulidade retórica, note-se. No meio do seu não acreditar, saiu-lhe o argumento tão óbvio: "Morreu, como?! Ainda ontem ele esteve na festa connosco!!!"

Como é comummente aceite, depois da célebre tirada da diva das revistas muito leves, a morte é o contrário da vida. Constitui aquele ponto caótico que as economias mais fortes do mundo ainda não conseguem dominar. Aquele contratempo que a ciência tenta resolver. Cada vez menos sabemos lidar com a morte em termos culturais. Parece ser uma coisa que não faz sentido em sociedades que vivem com algum conforto material e numa rejeição máxima dos valores espirituais. Num dia estamos em festas, noutro dia mortos. Numa sociedade assim, a morte devia fazer-se anunciar. Devia mandar-nos as suas intenções em carta registada para podermos resolver a nossa situação enquanto contribuintes, enquanto cidadãos. Esta poderá ser uma ideia para aquelas incríveis equipas que realizam estatísticas bombásticas. Quanto perde o país em impostos em relação àqueles que partem para uma morte que não se fez anunciar?

Fica bem, agora, fazer o contraponto com a civilização egípcia, elogiando a sua postura perante a morte. Se me é permitido o exagero, parece que quando nascia uma criança, o túmulo era encomendado antes do berço. Aquela gente adorava morrer. Mas, o mais curioso, é que, depois de já ter entrado em vários túmulos egípcios não encontrei a sensação de morte em nenhum dos seus cantos. Parece que os egípcios descobriram que, não a podendo vencer, o melhor é aliarmo-nos a ela, convertê-la de alguma forma em supra vida.

Esse prazer da morte, no Egipto, era qualquer coisa, também, de individual. O defunto era colocado no seu túmulo e por aí ficava em sossego. Atitude bem contrária tinham os barrocos. São bastante comuns as inscrições tumulares deste tempo em que, os próprios defuntos, nos dizem mais ou menos isto: "Andas aí todo contente tal como eu andei! Bem podes deixar de sorrir que, mais dia menos dia, vais encontrar-te num túmulo frio como o meu". Os mortos barrocos não estão pois, sossegados. Carregam consigo uma espécie de inveja pelo facto de nós estarmos vivos e eles não. Interpelam-nos sem pudor numa comunicação imediata entre mundos: "Ó tu, que estás vivo! Olha! Vem cá! Vê o que te espera!"

Para um egípcio, seria talvez considerada uma boa passagem para a morte estar um dia antes numa festa. Uma espécie de despedida de solteiro. Para um barroco isso seria entendido como um "Eu bem te avisei. Isso já aconteceu a um primo meu que está naquela sepultura a dois passos aqui da minha."

Talvez a melhor resposta para isto seja a da poesia. Em Roma, num túmulo sem nome (mas que sabemos pertencer ao romântico Keats), pode ler-se a seguinte frase: "Aqui jaz alguém cujo nome foi escrito na água."
                                                                                    Alexandra Pinto Rebelo