domingo, 5 de dezembro de 2010

Eça e os sinais de reverência

                                                                                

A maior parte dos portugueses limita-se a ter "conversas de corredor" sobre os autores portugueses no ensino secundário. Não há tempo para se aprofundarem questões, para considerar o escritor uma pessoa inteira e, como tal, nada semelhante a um único bloco coerente. Eça é um positivista, tenta-se retirar disso as provas mais do que batidas em Os Maias e ponto final.

A minha formação universitária é em literatura. Foi só num dos últimos anos do curso que me apresentaram os outros Eça. Aquele inicial, romântico, mais tarde reunido num volume com o cómico título de Prosas Bárbaras; o jornalista que, tendo à porta do prédio o paquete esperando a sua crónica para ser publicada no jornal e que, não tendo nem texto nem ideia do que iria escrever, resolveu arrasar o bei (governante) de Tunes, capital da Tunísia; o jovem viajante, escrevendo páginas emocionantes sobre a sua viagem ao Egipto; o homem religioso que no fim da sua vida escreve sobre a vida de santos.

Há dois momentos da sua vida que considero comoventes para nós enquanto leitores. Leitores sobretudo da personalidade de um escritor. O primeiro momento é descrito por Raul Brandão no seu livro Memórias, ocorrido na viagem que Eça faz ao Egipto acompanhado pelo seu futuro cunhado, o Conde de Resende. Ambos assistem à missa no túmulo de Jesus, em Jerusalém. Eça, profundamente emocionado pela situação, cai de joelhos em reverência. Quando o Conde de Resende levantou os olhos, dois ou três mil peregrinos tinham imitado aquele impulso emotivo, ajoelhando-se da mesma forma.

Outro episódio, mostrando o mesmo sentido de devoção profunda, é nos relatado pelo próprio Eça de Queirós, em In Memoriam, colectânea de textos publicada em 1896 em memória de Antero de Quental. O testemunho de Eça tem o título sugestivo de A um génio que era um santo. Descreve como, andando em Coimbra, ainda estudante, numa noite macia de Abril ou Maio avistou sobre as escadarias da Sé nova um homem, de pé, que falava. "O homem com effeito cantava o Ceu, o Infinito, os mundos que rolam carregados d´humanidades, a luz suprema habitada pela ideia pura(...)". Deslumbrado, o jovem Eça toca o cotovelo de um camarada que lhe murmura entre gosto e pasmo: "- É o Antero!..." Sentados nos degraus da igreja, outros homens embuçados, escutavam, em silêncio e enlevo "como discípulos". "Então, (...) destracei a capa, também me sentei n'um degrau, quasi aos pés de Anthero que improvisava, a escutar, n'um enlevo, como um discípulo. E para sempre me conservei assim na vida."


                                                                                    Alexandra Pinto Rebelo

domingo, 28 de novembro de 2010

Os olhos de Cabíria

É de 1957 o excelente filme de Fellini As noites de Cabíria (no original, Le Notti di Cabiria).


Cabíria vive num dos mundos pelo qual todos nós preferimos passar ao lado. Vive numa casa tosca, num subúrbio inenarrável da cidade de Roma. Prostitui-se, ganhando com isso algum dinheiro que vai pondo de parte. O local onde se mostra, juntamente com outras cúmplices de infortúnio, é um complexo de ruínas do antigo império romano.

Cabíria tem o sonho de encontrar alguém que a ame. Passa, por acaso, num velho teatro que apresenta, nessa noite, um espectáculo de ilusionismo. Cabíria entra e é escolhida por entre o público para ser parte integrante daquilo que se vai passar. Cabíria é hipnotizada, revelando perante uma plateia cheia de desconhecidos, que dela se riem, o seu sonho inocente.

No fim do espectáculo, um homem vem ter com ela. Oferece-lhe um café. O homem, tal como Cabíria, tem um olhar cansado, tão cansado, mas capaz ainda de algum brilho. Começam a encontrar-se com alguma regularidade. Ambos vivem num exílio da sociedade comum, exílio esse escolhido ou não (talvez nem os próprios saibam. E nós, saberemos?). Crescem os sorrisos e o brilho. Ao fim de algum tempo planeiam casar e comprar um pequeno negócio. Cabíria vende a sua casa tosca, levanta todo o dinheiro junto até então. Encontram-se num restaurante agradável fora de Roma, com vista sobre um lago. Cabíria leva um rolo enorme de notas, tornadas em símbolo que se metamorfoseou. Eram elas o resultado da sua vida de excepção, pela negativa, representando agora a base para o início do sonho que se irá cumprir. Mas cumprir-se-á?

O homem sugere-lhe ver o pôr-do-sol à beira do lago (ideia tão antiga esta do Sol se pôr, incorrecta, é certo, mas poética). Leva-a até ao topo de uma arriba. A testa dele sua demasiado. Compreendemos que algo está errado muito antes de Cabíria. Ela tem os olhos ainda cheios de paixão. Escorrega, quase caindo. Nesse momento pressente o que aconteceu, o que acontece, o que vai acontecer. Os seus olhos mantêm a forma da paixão, mas são atravessados de dor, enchendo-se de lágrimas.

Com este texto apenas queria chegar aqui, onde cheguei: a este olhar de Cabíria. É um olhar humano, perfeitamento coadunado ao nosso plano humano. Há uma mulher tornada feliz que, no momento em que pressente a desilusão, junta dois sentimentos díspares no mesmo olhar. No entanto, este olhar também pode ser elevado ao plano civilizacional. Todos nós, os do Sul da Europa, ou de uma forma mais extensa, os do Mediterrâneo, compreendemos bem isto. O olhar de Cabíria são os nossos sonhos interrompidos. O olhar de Cabíria são as ruínas pelas quais passamos diariamente, representando a morte daquilo que foi projectado. Não me refiro só aos sonhos de um cristianismo puro, aos de um Islão doce, aos dos descobrimentos ou àquele do V Império do mundo. Refiro-me também aos sonhos mais práticos e mais recentes de uma sociedade justa, com emprego, baseada no mérito e no humanismo.

Este é o último sonho da Europa que está, agora, pleno das lágrimas de Cabíria. Qual será o final? Não falei dele propositadamente. O do filme é fácil de ver. O da Europa do Sul, logo se verá.

                                                                                                                     Alexandra Pinto Rebelo

sábado, 4 de setembro de 2010

Antiguidade Clássica 1.

Foi-me mostrado, desde sempre, que o mundo clássico, isto é gregos e romanos,  tinha um sentido religioso um pouco perturbador.

Aquela gente, capaz de escrever verdadeiros monumentos tais como a Íliada ou a Eneida, referências literárias de uma Europa que ainda não se cansou de as estudar; capaz de lançar alicerçes fortíssimos tais como o conceito de democracia, os preceitos da filosofia, da história, do direito e tantos outros; poetas-intérpretes tão sublimes da alma humana que, até hoje, ainda usamos os seus mitos como legendas grandiosas da nossa pequenez tais como o "complexo de Édipo", a "caixa de Pandora", o "calcanhar de Aquiles"; artistas tão surpreendentes que, passados quase mil anos de silêncio, conseguem ressurgir em indicações estéticas para o Renascimento... aquela gente, dizia, que fez tudo ou quase tudo em grande o que uma grande civilização pode fazer tinha apenas um instinto religioso primitivo, ramalhete de terrores inspirados pelas severidades atmosféricas e de loucuras desculpadas pelos estados psicóticos induzidos.

Nesta leitura há qualquer coisa, então, que não encaixa.

Não é necessário pensar muito para compreender que a antiguidade clássica foi julgada pelos vencedores, ou seja pelos cristãos. Pela segunda vez na história, reforçava-se a ideia de que só existia um deus verdadeiro. A minha expressão "reforçar a ideia" é, claro, um eufemismo. Existindo só um deus, todos os outros se tornavam falsos, por seu decreto. Os adoradores dos outros, podiam tomar vários adjectivos desde os mais simpáticos como patetas, aos mais benevolentes, como iludidos, até aos mais perigosos, como heréticos. Estes adjectivos mais perigosos eram geralmente acompanhados de uma acusação que levava à morte. O percurso até ela era, geralmente, muito humilhante, perturbador e doloroso.

Pretendo com tudo isto deixar só uma pequena nota, por hoje. em relação à religião clássica.  Aquela gente que a praticava tinha exactamente os mesmos instintos religiosos de todos os povos. Os seus deuses funcionavam tão bem como os de quaisquer outros. Torna-se comovente para nós, hoje, lermos as suas inscrições nos templos. Podermos partilhar dos seus desejos íntimos, do seu louvor, dos seus desabafos para com os seus deuses é uma espécie de benção.

                                                                            Alexandra Pinto Rebelo

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

"Aquilo" e os símbolos


Já conheci pessoas que, por conhecerem meia dúzia de símbolos esotéricos, achavam que tinham chegado a qualquer lado de diferente que não fosse apenas o conhecerem meia dúzia de símbolos esotéricos. Bem pior do que isto, foi já ter conhecido pessoas que, conhecendo meia dúzia de centenas de símbolos esotéricos se deixavam reverenciar pelos outros, aqueles que apenas conheciam um punhado. Mas em todos esses esotéricos superiores, existe um momento de falta de prudência, em que conseguímos ver no seu olhar a desilusão por saberem que, afinal, estão mais longe "daquilo" do que quando começaram. As prateleiras das nossas livrarias estão cheias de livros escritos por estas pessoas. Ser-se considerado um esotérico, em certos círculos, dá prestígio e dinheiro.

Os símbolos esotéricos são, sobretudo, uma linguagem. Tal como todas as linguagens, não são a coisa em si mas antes códigos a que se lhe referem. Antes dos símbolos há que conhecer o seu referente pois, de outra forma, eles não nos servirão para grande coisa. Posso decorar mil palavras de árabe mas se não souber o seu sentido, elas não me servem de nada. Experimente dizer "Salam ali cum" a um falante. Receberá como resposta um sinal facial de espanto e a resposta "Ali cum salam". Se repetir muitas vezes a experiência vai compreender que ali está qualquer coisa de simpático. No entanto, isso não é falar árabe. Pode decorar até várias frases e pronunciá-las a um não falante daquela língua. Verá que o convence com alguma facilidade de que domina uma língua exótica.

Confesso que tenho uma grande dificuldade em relação à linguagem alquímica. Não consigo perceber nada, a nível simbólico, daquilo que se passa. Por vezes pego num livro com uma imagem e começo a descrevê-la a uma amiga que, ao contrário de mim,  parece que fala alquimiano desde que nasceu. A minha performance é mais ou menos assim: "Está aqui um homem com uma espada erguida na mão. Parece que vai matar um ovo grande que está em cima de uma mesa. Não sei porquê, pois o ovo tem aquele ar inocente de todos os ovos e não parece ter feito mal ao senhor. Deve estar muito frio nesta terra. O senhor esqueceu-se e vestiu uma saia curta. Por isso teve de pôr toda a lenha que tinha em casa na lareira e ainda foi pedir mais alguma emprestada aos vizinhos." Estas descrições pertencem ao meu reportório de bom humor. Assemelham-se muito, agora que penso nisso, às descrições do Ocidente feitas pelo chefe índio no livro Papalagui. A minha amiga ri-se porque, ao dominar intuitivamente esta linguagem (e por a conhecer bem por a ter estudado), já não a consegue percepcionar sem um sentido imediato. A minha interpretação literal, acrescentada aqui e ali com um pouco de imaginação, proporciona-lhe um género de humor idêntico àquele com o qual as crianças nos presenteiam. Grande parte do seu encanto, aliás, provem do facto de ainda não dominarem bem os códigos culturais da sua etnia. Desta forma é fácil quebrarem as convenções que para nós já estão completamente adquiridas e mecanizadas, abrindo-lhes uma brecha poética ou humorística.

O melhor do caminho é outra coisa, sendo apenas privilégio de alguns. Refiro-me a conhecer directamente "aquilo" ou os vários "aquilos" que não se conseguem reproduzir com as nossas linguagens habituais. Depois, então, ir reconhecendo os vários símbolos que os tentam exprimir, sendo cada um deles limitado à sua maneira, claro. Se não fossem limitados dar-nos-iam uma representação completa e isso, pela natureza de ambos (do "aquilo" e sua simbolização), é impossível. Depois, então, é deixarmo-nos deliciar com a capacidade que outros antes de nós tiveram na tentativa de exprimir o inexprimível. Lembro-me de certa vez me ter maravilhado por os monges budistas serem chamados de "aqueles que descobriram o caminho de casa". Eu tinha tido aquela sensação sem palavras mas nunca tinha conseguido dar-lhe um nexo semântico e sintáctico.

Com isto tudo não quero dizer que os símbolos devam ser postos de parte. Eles têm o seu lugar. Pertencem ao nosso património cultural, ao nosso património artístico que seria infinitamente mais pobre sem eles. Pertencem ao melhor que o ser humano conseguiu fazer e muitos deles até são o resultado de uniões perfeitas entre mundos que por vezes se tocam. Mas, apesar, de tudo, são apenas símbolos. Trata-se do coração aberto com um canivete numa árvore e não a experiência do Amor em si. O que no fundo quero dizer é que é possível conhecer os "aquilos" directamente sem esperarmos deslumbrados por ouvir os relatos de outros que, a maior parte das vezes, nem lá estiveram. Por muito belas que sejam as imagens que mostram, por muito coerentes que sejam as palavras que usam.

                                                                          Alexandra Pinto Rebelo

Considerações sobre a morte

Num destes dia, andando lentamente ao longo de um passeio, ouvi uma conversa que me surpreendeu. Um indivíduo falava ao telefone com alguém. Esse outro deu-lhe a notícia da morte de um amigo, ou conhecido. Mas o indivíduo estava incrédulo. Uma incredulidade retórica, note-se. No meio do seu não acreditar, saiu-lhe o argumento tão óbvio: "Morreu, como?! Ainda ontem ele esteve na festa connosco!!!"

Como é comummente aceite, depois da célebre tirada da diva das revistas muito leves, a morte é o contrário da vida. Constitui aquele ponto caótico que as economias mais fortes do mundo ainda não conseguem dominar. Aquele contratempo que a ciência tenta resolver. Cada vez menos sabemos lidar com a morte em termos culturais. Parece ser uma coisa que não faz sentido em sociedades que vivem com algum conforto material e numa rejeição máxima dos valores espirituais. Num dia estamos em festas, noutro dia mortos. Numa sociedade assim, a morte devia fazer-se anunciar. Devia mandar-nos as suas intenções em carta registada para podermos resolver a nossa situação enquanto contribuintes, enquanto cidadãos. Esta poderá ser uma ideia para aquelas incríveis equipas que realizam estatísticas bombásticas. Quanto perde o país em impostos em relação àqueles que partem para uma morte que não se fez anunciar?

Fica bem, agora, fazer o contraponto com a civilização egípcia, elogiando a sua postura perante a morte. Se me é permitido o exagero, parece que quando nascia uma criança, o túmulo era encomendado antes do berço. Aquela gente adorava morrer. Mas, o mais curioso, é que, depois de já ter entrado em vários túmulos egípcios não encontrei a sensação de morte em nenhum dos seus cantos. Parece que os egípcios descobriram que, não a podendo vencer, o melhor é aliarmo-nos a ela, convertê-la de alguma forma em supra vida.

Esse prazer da morte, no Egipto, era qualquer coisa, também, de individual. O defunto era colocado no seu túmulo e por aí ficava em sossego. Atitude bem contrária tinham os barrocos. São bastante comuns as inscrições tumulares deste tempo em que, os próprios defuntos, nos dizem mais ou menos isto: "Andas aí todo contente tal como eu andei! Bem podes deixar de sorrir que, mais dia menos dia, vais encontrar-te num túmulo frio como o meu". Os mortos barrocos não estão pois, sossegados. Carregam consigo uma espécie de inveja pelo facto de nós estarmos vivos e eles não. Interpelam-nos sem pudor numa comunicação imediata entre mundos: "Ó tu, que estás vivo! Olha! Vem cá! Vê o que te espera!"

Para um egípcio, seria talvez considerada uma boa passagem para a morte estar um dia antes numa festa. Uma espécie de despedida de solteiro. Para um barroco isso seria entendido como um "Eu bem te avisei. Isso já aconteceu a um primo meu que está naquela sepultura a dois passos aqui da minha."

Talvez a melhor resposta para isto seja a da poesia. Em Roma, num túmulo sem nome (mas que sabemos pertencer ao romântico Keats), pode ler-se a seguinte frase: "Aqui jaz alguém cujo nome foi escrito na água."
                                                                                    Alexandra Pinto Rebelo

sábado, 17 de julho de 2010

A Questão de Portugal

Não há somente o Portugal da Terra
Há outro Portugal, o do Outro-Mundo,
Onde Pedro anda caçar na serra
E Inês repete o seu adeus profundo
Senhor de um povo que entre brumas erra,
O Portugal-Maior não tem segundo
Rei Encoberto, quando vais para a guerra?
Camões, que estás dizendo, moribundo?
Andaste na oficina do Bandarra
Ó tu
Que sentes do bruxedo a garra
E deitas profecia à lua-cheia!
Leva-me a crer, com a peneira erguida,
O outro Portugal de outra-vida
Por quem a raça anseia!
António Sardinha (1888-1925)
 
 
A Questão de Portugal
 
Na época salazarista falar dos Descobrimentos e do resto da História de Portugal era, de alguma forma, uma espécie de legitimação do Estado Novo. Claro que a História pode ser aproveitada para determinados fins uma vez que também ela é um aproveitamento dos factos do tempo. Mas há uma questão que acompanha a nossa História e que é exactamente a Questão de Portugal.
Provavelmente nunca um país foi tão questionado pelos seus. Tanto pelos seus poetas, escritores ou filósofos como pela forma decaída da Questão traduzida no tipo de frases ditas pelo português comum: "este país não vai a lado nenhum",ou "tenho vergonha do meu país". Parece haver uma relação com este país do tipo "eu e ele" ou "eu e tu" e talvez por isso André Coyné tenha escrito "Portugal é um ente", ou seja, algo que se confunde com um ser, com uma pessoa. Temos uma relação verdadeiramente pessoal com o nosso país. Daí que até os filósofos que se debrucem sobretudo sobre questões ontológicas, mais tarde ou mais cedo, toquem a pátria nas suas reflexões, toquem esse outro ser para além deles e dos outros e escutem os poetas nos seus lamentos e exaltações.
Se um país é personificado deverá comportar-se como uma pessoa. Com o seu corpo, o seu coração, a sua alma (incapaz cientificamente de ser testada) bem como o seu espírito. A Questão de Portugal talvez seja a questão da própria Pessoa. O que é dado à Pessoa? O que se espera dela? Para onde caminha? A Questão da Pessoa é a questão antropológica, uma questão ainda muito longe de ter resposta. Portugal e Pessoa confundem-se e mantêm-se como um maná a que recorrentemente escritores, poetas, filósofos e artistas retomam como seu alimento. Daí o facto de existir uma linhagem em Portugal de entes que questionam o ente maior onde vivem. Uma linhagem impossível de aniquilar pois parece ter as suas raízes num país que a tecnologia, a política ou as grandes empresas nem sequer vislumbram. O país invisível, acima do país territorial e político, aquele que é construído lado a lado com este, nas margens do rio do esquecimento que apenas alguns sabem atravessar, e, no entanto, adormecido não morre, esquecido, não esquece, enterrado no passado, reside no futuro.
Este outro Portugal, o do Outro-mundo, o Portugal Maior ou o da Outra Vida de que nos fala António Sardinha não parece ser apenas uma questão teórica ou uma questão de teoria pois vai muito para além de uma especulação puramente formal e racional, não obedece igualmente a um conjunto de princípios sistemáticos e perenes que regem uma Ideia, não há um sistema propriamente dito, porque, de forma serpenteada e sábia, filósofos e poetas sabiamente souberam contornar a “tentação” de elaborar um sistema; não é uma suposição porque a Questão não tem sempre respostas vagas, não é uma tese pois não se defende um ponto de vista perante as batinas dos académicos ou de olhares penetrantes em busca de um erro ou contradição (antes pelo contrário, muitas vezes se foge do academismo como o diabo da cruz), não é um teorema pois muitas das “visões-respostas” sobre o que é Portugal não são demonstráveis num compasso dedutivo antes vindo, por vezes de intuições rápidas, sentimentais, muito semelhantes à forma como o Espírito Santo sopra. Não é uma questão teórica em definitivo, até porque a teoria, de alguma forma ou se fica por ela própria ou é impelida para a prática, como a potência para o acto. E os resultados muitas vezes não são nada deslumbrantes.
A Questão de Portugal, roça a utopia quando o sonho se torna tão agudo como uma agulha no cimo de uma montanha, mas não é utopia porque esta traz em si o germe da sua negação. A utopia é um céu congelado e um céu congelado não cabe nesse Outro Portugal. Passa suavemente pelo delírio, esse Outro Portugal, o delírio provocado pelo perfume deveras sentido do jardim plantado à beira mar, um paraíso possível em carne, o delírio de vermos efectivamente Pedro a caçar, Inês a dormir, as naus a avançar. Um delírio que nos remete para o passado, mitificando-o (ou seja, dando-lhe características míticas), repetindo-o em rituais interiores feitos de gestos do pensamento e, mais estranho ainda que um delírio, uma evocação onde entra naturalmente o coração.
A Questão de Portugal está ligada à evocação desse outro Portugal indefinido, esse “deitar profecias à lua cheia” pode ser lido como ter visões em tempo de evocações ou evocar em tempo de visões. Vê-se esse outro Portugal e evocamo-lo. Não há a ansiedade de passar da teoria à prática, há a certeza que esse outro Portugal existe. Existe na esfera do sagrado e é necessário chegar a ele. Existe em movimento, em vida, em criação e em construção perpétua. Tudo ao contrário da questão teórica e até meramente filosófica naquilo que pode ter de especulação sobre o real. Não há uma aplicação teórica, há uma proposta de muitos caminhos para chegar ao Portugal imaginado e todos esses caminhos são abertos pela porta principal da Questão antropológica. Numa linha de Pascoaes abre-se uma avenida de luz no meio da paisagem: “as nações sem alma são simples colónias”; num texto de António Quadros uma advertência: “a antropologia precede a História” e “ não é possível, em suma, indagar sobre o passado sem ter interrogado primeiro o ser do homem e as condições do movimento mental e anímico que orientam, no seu processo, as frustrações e os triunfos dos movimentos sociais ou políticos“; numa frase de Fernando Pessoa um breve e surpreendente atalho: “considerar a Pátria Portuguesa como a coisa para nós mais existente, e o Estado Português como não existente”; num escrito de Leonardo Coimbra, uma orientação com a dimensão de uma vida: “a seriedade e profundidade da alma nacional aparecerá logo que esta consiga furtar-se à fascinação dos figurinos estrangeiros. Como quebrar o encanto? O poeta, o pintor, o músico devem procurar dar ao povo português a sua alma verídica!”, e assim sucessivamente. Cada desvendador de Portugal é um batedor na selva dos enganos daquilo que se poderia tomar por um simples país, igual demais aos outros e é ,em simultâneo, graças às revelações que vai tendo desse Portugal Maior, seu profeta. O que é deveras estranho uma vez que a Era da Profecia parece ter acabado por volta do século VI a.c. e para nosso bem não há dúvida que nesse aspecto somos um país atrasadíssimo, retido nas malhas de um tempo há muito esquecido.
O processo profético em Portugal passa pela palavra e ainda por uma consciência do tempo diferente da contagem decrescente dos relógios digitais e terá como consequência uma estranha forma de vida.
A palavra tem a dupla função de materializar as visões dos ângulos desse Outro Portugal e em simultâneo, de alguma forma, o ir criando. É um processo místico onde céu e terra participam: Hildegarda de Bingen, visionária medieval, afirmava ter visto a cidade do céu em construção. A cidade celeste, que julgávamos definitivamente erguida está afinal em construção. Esta afirmação obriga a rever em parte a noção do mundo das essências de Platão, onde os modelos/arquétipos nos surgem como perfeitos, acabados e inalteráveis noutra dimensão. Estará o céu em construção ou estará apenas semi-construído? A geografia celeste está em movimento? A resposta alquímica “o que está em cima é como o que está em baixo” oferece, pela sua abstracção uma resposta intermédia: nem totalmente construído, nem paradoxalmente, totalmente imperfeito. O Portugal imaginário é imaginado pelos nossos pensadores e, conforme o seu grau de pureza, cabe ou não nessas esferas celestes. Esse Portugal é o “país das horas aparentes”, para citar Álvaro Guerra. Aqui, no Portugal íntimo, não há horas para quem nele nasce e vive. Não há tempo. A lua como medida dos ciclos, o sol como medida dos dias são apenas a aparência cósmica, a camuflagem de um país que já não é de um mundo de grilhetas e gerador do tempo. Saturno está em festa, afastou-se de Chronos e abraçou Kairos gozando os dias de ouro. Aqui, onde se agitam e repousam as canetas dos poetas e filósofos não há passado nem futuro, nem compromisso entre memória e sonho, porque a memória é o seu sonho e o seu sonho a sua memória. E a única história possível é a do futuro.
A percepção deste outro tempo onde não há horas passa pelo fenómeno da iniciação e da irmandade, ambas geradas na naturalidade e a caminho da sobrenaturalidade. É tentador pensar numa linhagem iniciática em Portugal que passe por ordens muito mais-do-que-secretas e, quiçá, perfeitas, palavras-passe e senhas cuja criptografia nem os melhores cabalistas possam decifrar. É tentador pensar sempre numa espiritualidade, de alguma forma, materialista, que seja visível, palpável, agarrada, escrita e que sobretudo tenha um dono dessa verdade encontrada. Há um acontecimento recorrente ultimamente a que se pode chamar “a propriedade da verdade”: não é a verdade encontrada que verdadeiramente interessa, mas sim, o dono da verdade, aquele que a descobriu e a possibilidade que este tem de ser uma “estrela” no mundo das descobertas. Convinha, para esses casos, lembrar que na Idade Média, a obra falava mais alto que os homens, e as suas mãos nada assinavam, não assassinando assim o verdadeiro propósito do seu gesto: a glorificação de algo maior do que si próprio.
O rito como possível porta para uma iniciação está hoje bastante limitado por fenómenos poluidores. Essa poluição contemporânea (que também é física…) pode ter como base a existência ou não do próprio mito que, como se sabe, é a base de qualquer rito. O sincretismo em espiral de que foram alvo diversas religiões (fenómeno crescente para qual nos chamou a atenção René Guénon) sobretudo a partir do século XIX com a explosão de uma antropologia eufórica nascida do deslumbramento pelas leis positivistas suscitou nalguns espíritos um desejo de uma simplificação que condensasse diversas doutrinas tornando os mitos e personagens míticas existentes em estranhas formas de religiosidade, unidos numa série de correspondências que partiam sobretudo do seu lado mais visível e exterior quando, na origem, estavam inseridos em espaços, tempos e culturas muito próprias. É assim que Isís, é afinal, Diana, que é Vénus que é Kali que está ligada à Deusa Mãe correspondendo à Virgem que é também a mulher interior que há em nós e ainda a “anima” dos homens, enfim, nem o caldeirão dos druidas levava tantos condimentos da mesma espécie. É tudo reunido e bebido de um trago e o individuo, uma vez imbuído de este estado de embriaguez mítico-sintética, pode, enfim, criar um rito aproveitando cacos dispersos de histórias soltas como uma espécie de arqueólogo apressado com o desejo absoluto de reconstruir e ressuscitar uma civilização inteira a partir de meia dúzia de pedras.
Em primeiro lugar nem todos os antigos ritos fomentavam o fenómeno da iniciação. Muitos eram ritos que procuravam a continuidade de uma certa normalidade da natureza e dos homens, inseridos numa consciência do tempo cíclico. Em segundo lugar, a iniciação pressupõe sempre uma ruptura, como tão bem nos ensinou Mircea Eliade
Não há mitos novos, nem se criam mitos e muito menos se criam mitos a partir de fragmentos de outros mitos. Em Portugal, o que se vive é uma consciência mítica perante a História o que permite aos seus filósofos, escritores e poetas irem alimentando de alguma forma, esse Outro Portugal que vive numa esfera mítica, e, pela lei natural, aquilo que é alimentado, permanece vivo. É essa consciência mítica, e não qualquer fenómeno ritual exterior que permite a iniciação em Portugal. O exercício da imaginação tem um papel decisivo na iniciação portuguesa pois toda essa consciência mítica tem lugar num espaço e tempos imaginários e obriga a rupturas internas com antigas formas de vida e de pensar, podendo haver, na maioria dos casos intervenção de um terceiro elemento nesse diálogo entre o homem e aquilo que imagina. Esse terceiro elemento é, de facto, sobrenatural. A consciência mítica leva a rupturas internas (características da iniciação) e que, por sua vez, conduzem à intervenção, ou ao sublinhar de forças sobrenaturais que de alguma forma legitimam o percurso iniciático. Da mesma forma que o grau de pureza do Portugal imaginado, leva a que este caiba ou não nas esferas celestes. É no centro da ruptura ontológica que reside a evocação e isso, na sua veracidade ou é extraordinariamente difícil de fazer (se se partir de um gesto voluntário e premeditado, no caso da iniciação ritual) ou é tão fácil como tomar um copo de água (se for um gesto interior absolutamente espontâneo, desapegado, como é o caso da iniciação mística). Em Portugal as palavras os silêncios, a geografia e a arquitectura antiga são a verdadeira sociedade secreta que alguns procuram nas fatiotas e gestos rituais improvisados e apressados. São estes factores os testemunhos de uma consciência mítica. E quem participa nessa consciência está sujeito à iniciação e a entrar numa espécie de irmandade que vive não da semelhança entre irmãos, mas sim, da sua absoluta diferença e originalidade interiores embora participando de algumas memórias semelhantes, de alguns sonhos, de alguma religiosidade, de uma sensibilidade face às mesmas questões (mitemas nacionais, messianismo etc) conduzindo à partilha dos mesmos símbolos nas formas de expressão e ainda da consequência quase inevitável de uma súbita intervenção do Espírito Santo. E tudo isto conduz a uma estranha forma de vida. A uma forma de vida dupla devido a uma consciência de missão, sem fanatismo ou vaidade, uma forma de missão cujo único compromisso está na obra que se deixa para trás na hora da morte.
Fernando Pessoa teve consciência de tudo isto, e, naturalmente, por ser livre, único e original, brincou com tudo isto: ao dizer desejar ser um fazedor de mitos, dizia, por outras palavras que alimentava um mito e chamava a atenção para o facto de se poder ou não criar mitos, e brinca ainda mais (destruindo por completo o materialismo espiritual) quando escreve: “A Ordem de Cristo não tem graus, templo, rito ou passe. Não precisa reunir, e os seus cavaleiros, para assim lhes chamar, conhecem-se sem saber uns aos outros, falam-se sem o que propriamente se chama linguagem. Quando se é escudeiro dela não se está ainda nela; quando se é mestre dela, já se lhe não pertence. (…). Não se entra para a Ordem de Cristo por nenhuma iniciação, ou, pelo menos, por nenhuma iniciação que possa ser descrita em palavras. Não se entra para ela por querer ou por ser chamado; nisto ela se conforma com a fórmula dos mestres: “quando o discípulo está pronto, o Mestre está pronto também. E é na palavra “pronto” que está o sentido vário, conforme as ordens e as regras.
Fiel à sua obediência - se assim se pode chamar onde não há obedecer - à fraternidade de quem é filha e mãe, há nela a perfeita regra de Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Os seus cavaleiros - chamemos-lhe sempre assim - não dependem de ninguém, não obedecem a ninguém, não precisam de ninguém, nem da Fraternidade de que dependem, a quem obedecem e de que precisam. Os seus cavaleiros são entre si perfeitamente iguais naquilo que os torna cavaleiros; acabou entre eles toda a diferença que há em todas as coisas do mundo. Os seus cavaleiros são ligados uns aos outros pelos simples laço de serem tais, e assim são irmãos, não sócios nem associados. São irmãos, digamos assim, porque nasceram tais. Na ordem de Cristo não há juramento nem obrigação”. A brincadeira de Fernando Pessoa é de uma ironia séria ou de uma seriedade irónica. A noção de irmandade surge como consequência da iniciação interna e não ao contrário. E a matéria prima do rito interior reside nesse Outro Portugal cujos símbolos vão ficando gravados, de geração em geração, na presenças de indivíduos que influenciam outros, nas palavras que se deixam escritas, nos silêncios partilhados, na pedra, na geografia diversa e na intervenção do Espírito Santo como fonte da iniciação desse e nesse Outro Portugal e seus criadores.
 
Cynthia Guimarães Taveira
 
 
 

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Os “Pontos” e os “is” da Arte

 

 
Mais do que aquilo que vestimos ou deixamos de vestir, o espaço que nos rodeia contribui para a formação das nossas cabeças. A roupa é a máscara, a persona, distante do nosso verdadeiro ser. A máscara que nos oferece todas as possibilidades de ser o que somos e não somos, o véu que nos oculta ou desvenda, enfim um produto, sobretudo, do tempo e dos humores. O espaço, por seu lado, é fundamental, diria em tom metafórico, para a formação dos ossos. Pedra e osso andam lado a lado na sua função e, em termos simbólicos, estão ligados à estrutura e, consequentemente, à nossa estrutura. Daí que a Arquitectura seja entendida, em tempos arcaicos, como a mãe de todas as artes, o eixo fundamental sobre o qual todos nós nos vamos desenvolvendo. As implicações da edificação de uma simples casa são tão profundas como os alicerces de problemas antropológicos do género “o valor da palavra” ou, a “casa dos homens”, lugar iniciático de muitas culturas arcaicas.
O osso é o que nos ergue, algo que vai crescendo em nós, o suporte de toda a carne, de toda a nossa aparência, os ossos são as consoantes da língua (tronco e os ramos), a carne , as vogais (as folhas). É o osso que fica depois da nossa morte, é a pedra erguida que se mantém depois da passagem das civilizações. É a paisagem que nos influencia os pensamentos e, muitas vezes, nos dita as acções, os caminhos escolhidos, a sensibilidade perante as coisas. A “contemplação dos ossos”, feita em modalidades do Ioga, é também, a contemplação da nossa paisagem interior, dos resíduos embutidos nos socalcos da memória, é o que resta depois do acrescento da pedra-cálcio, depois do acrescento da nossa vida ao nosso corpo.
Por tudo isto, a Arquitectura tem um papel fundamental na actividade do homem. É ela que nos aproxima ou desvia do real, nos aconchega ou nos expulsa do mundo. A Arquitectura é a construção de edifícios e é também muito mais que isso, por sinal, é a construção de tudo.
Entendida como uma arte sagrada, esteve, nos primórdios, ligada ao primeiro sinal no homem do transcendente: o céu. Mesmo retirando toda a carga religiosa e simbólica que o céu possa conter, a realidade é que um homem, olhando para esse vasto universo de estrelas, esse labirinto sem sentido, nocturno e caótico, sente a tontura de algo que o transcende e aquilo que o transcende tem, de alguma forma, de fazer sentido. A primeira construção do homem é o ordenamento das estrelas, dos astros. É a procura da ordem nesse abismo que se estende para cima. Dar um sentido às estrelas, ordená-las, perceber quando aparecem e quando desaparecem e dar-lhes, enfim, uma história, um enredo que se pareça com a sua vivência corporal e sentida, com seus ciclos, suas noites e dias, a sua marcha, a sua orientação. É quando o universo começa a fazer sentido que a construção deixa de ser apenas um abrigo do frio e do calor para se tornar uma arte. É quando se dá a união entre terra e céu que começa o trabalho da pedra em função dupla de ordenar o território e de o sacralizar face ao céu. Da construção como necessidade passa-se à construção como arte, das necessidades básicas passa-se àquilo que Oscar Wilde disse: ”O supérfluo é absolutamente essencial”, e a arte é, afinal, absolutamente essencial tanto para a manutenção do homem no mundo como para o seu crescimento, alargamento de fronteiras interiores. A arte, por vezes, suprime, no caso da espécie humana, os impulsos mais animalescos, aqueles que se esperam essenciais, pois não é verdade que em Auschwitz se trocavam rações por histórias? A fome do homem, como ser com tendências transcendentes, pode suprimir a fome de pão pela fome, ou sede, de sagrado e é aí que entra a arte e a construção, e o papel do homem no meio deste vasto universo, suplicando ordem e invenção. Se o místico espera, em jeito de oração (sua forma de arte), desapego, renúncia e contemplação que o céu interior, de alguma forma desça até ele, ao homem comum só lhe resta construir, reconstruir, passo a passo, esse céu na terra, na acção, na entrega, no gesto.
É no impulso construtivo que residem as tendências artísticas e deveria ser nas tendências artísticas que deveriam residir as tendências construtivas (o que não é verdade hoje em dia, infelizmente). Mesmo na desconstrução do mundo, tema recorrente na actual arte, o propósito último da obra deveria emergir da sua raiz: a construção de um novo mundo, sagrado, perto da perfeição das rotas das estrelas, perto das histórias ecoadas pelos astros, perto da música das esferas. Daí que Lima de Freitas tenha dito a frase radical: “A arte ou é sagrada ou não é arte”.
Infelizmente a desconstrução actual parece não ter como propósito último esta sacralidade, mas sim o alongar do súplicio de uma civilização em agonia, uma tradução ipsis verbis da fealdade, da ignorância e da falta de graça do mundo contemporâneo. E uma tradução não é uma criação ou, quanto muito, a ideia não se deve ao seu tradutor.
Viaja-se para se conhecer novos povos, novas paisagens, novas línguas, mas também novas construções. Os monumentos têm à sua roda toda a espécie de turistas, de óculos, binóculos, câmaras manuais, digitais, de fotografia, de vídeo. Ver, a obsessão de ver para crer, para acreditar, para sentir, enfim para viver, dizer que se viveu, lembrar que se viveu. Este acto impulsivo e compulsivo do turista reside na intuição profunda de que a construção está intimamente ligada à nossa vida, e mais do que isso, nos influencia profundamente. A paisagem, o clima, moldam os povos, a arquitectura feita pelas mãos do homem molda-nos face à atitude que temos para com o sagrado. Porque é essa a sua origem. O impulso mórbido pela desconstrução e desfragmentação contemporâneas tem o seu desejo último na destruição completa, como a palavra final de um processo incessante e está traduzido nos filmes-catástrofe, em que os edifícios nos aparecem violentados, os canos, como entranhas, partidos, gotejando, os fumos de uma purificação pelo fogo atravessando as ruas, a noite cinzenta como a cor principal, o cheiro triste, quase sentido vindo do ecrã. Este tipo de visões apocalípticas é a de um futuro-mais-que-ruinoso (as ruínas têm alguma dignidade), porque a acção da destruição não se deu num tempo lento, mas sim num tempo súbito, inesperado, violento e sem piedade e demonstra a má relação que o homem tem com a sua Arquitectura. Há um desejo obscuro de tudo destruir porque, no fundo, não se ama nem respeita esta Arquitectura nascida na época pós-guerra do Bauhaus, nascida das necessidades de um mundo ainda acocorado pelo medo da morte. A nova Arquitectura e, por inerência, a nova arte, “pós-pós-tudo”, traz em si o germe da desordem da própria guerra e a sua projecção no futuro só pode ser a sua própria destruição. Hoje há uma má relação do homem com a Arquitectura que o rodeia e, consequentemente, há uma má relação com o sagrado ou vice-versa.
A natureza é fértil em modelos ordenados. A geometria está presente num grão de areia ou numa gota de chuva. E, segundo a teoria do caos, mesmo em dinâmicas aleatórias há padrões que se vão estabelecendo e desenvolvendo. Há alguns anos fez-se a seguinte experiência com bebés em idade de gatinhar: desenhou-se no chão dois tipos de desenho - num o desenho era confuso, caótico, noutro o desenho era geométrico, harmonioso. Todos os bebés escolheram dirigir-se para a ordem. Preferiam um ambiente mais “estável”, apesar de tudo.
Lévi-Strauss desenvolveu o conceito de sociedades quentes e frias, sendo as frias as mais apegadas às suas tradições, e as quentes mais instáveis e abertas às mudanças. Ao lermos René Guénon ficamos com a sensação de que este nos vai descrevendo (mesmo pela negação das sociedades actuais) uma Idade de Ouro perfeitamente tradicional. Esta Idade de Ouro, assim vista pelo olhar binário e estruturalista Lévi-Strauss, seria uma sociedade congelada, encerrada na sua perfeição. Uma sociedade perfeitamente apolínea e nada dionisíaca, segundo outra interpretação, de Ruth Benedict. Onde está a abertura necessária para o engenho e a arte na Idade de Ouro? Será que o papel da arte não é também ele o da desconstrução para a construção de outro mundo? Como não cair num fundamentalismo teórico ainda que com raízes na Tradição? E como não cair na total irresponsabilidade face ao vamos construindo? E porque chamavam os gregos à arte “imitação”? À pergunta “quais os limites da arte?” vem agarrada uma outra, tão importante e fundamental: “quais os limites do homem?”. Tão confusos estamos devido à nossa sociedade escaldante que já nem sabemos a resposta. Se se é tradicionalista, é-se reaccionário e o perigo é o do fanatismo (porta fechada por dentro), se se é liberal, já não se reage a nada e as portas acabam todas fechadas por fora sem que possamos sair para lado nenhum. É o que se passa hoje com a Arquitectura e com a arte em geral. Na Arquitectura isso tende a deixar de ser apenas simbólico com a construção de condomínios fechados, dos quais não se deve sair.
Os edifícios babilónicos tendem naturalmente para o abismo, e aqueles que nada têm a ver com orientações sagradas, tradicionais ou, simplesmente, respeitadoras da natureza envolvente, tendem a cercar o homem em prisões que nada têm de virtuais. E o homem é o espelho do que constrói. A imagem que imagina é a imagem que projecta, a imagem projectada é a base, a fonte da imagem seguinte a ser imaginada, e assim por diante. A palavra que se escreve é a chave da próxima, isto numa ordem simples, isto até dentro da desordem e do surrealismo. Daí que a Arte mais elevada, a Arquitectura, tenha uma profunda influência no pensamento.
A facilidade com que se aprende a trabalhar com um computador tem como causa o facto de este ter sido possível a partir de uma estrutura muito simples, o “zero” e o “um”, e ninguém, pelo menos por enquanto, chama “inteligente” a um computador. As escalas musicais, a paleta das cores, as formas geométricas, em suma, tudo aquilo que não é criação do homem, parece ter como base estruturas formadas a partir da variedade e da complexidade dos elementos estruturantes, não binários. A “imitação” no sentido grego parece ser trabalho para uma vida. A desfragmentação e consequente desumanização da arte é, no fundo, a incapacidade crescente para imitar. É mais fácil destruir o que está criado (neste caso, os modelos naturais), do que ser demiurgo no sentido em que se ama e se descobre o que se vai criando ou imitando. E não se trata de ser o macaco de Deus, a imitação é a da sua criação, não do Deus em si, porque a Ele ninguém O conhece e, por isso, ninguém O pode imitar, muito menos um macaco…A arte contemporânea toma a destruição nas mãos como se se tratasse de criação, o que é um verdadeiro paradoxo. E isso é tão grave como uma fábrica que produza sistematicamente a morte. Acabo de ler a notícia de um alemão, Gregor Schneider (que se distinguiu por ter colocado um bigode a Mona Lisa, um destruidor, portanto, e não um criador) que quer transformar a morte numa performance convidando moribundos a morrer perante um “público”. Este auto denominado artista deve lamentar imenso não terem existido câmaras nos campos de extermínio com transmissões em directo que mostrassem ao mundo a “beleza” da morte. Os artistas contemporâneos que fazem “instalações”, borrões em cinco minutos ou edifícios frios, erectos e distantes estão a matar o mundo e são tão eficazes nisso como o capitalismo exacerbado que os mantém. Peço desculpa mas não há teoria da arte que justifique a barbárie.
Hieronymos Bosch, no Jardim das Delícias, oferece-nos, no painel esquerdo, um paraíso, onde na aparência está tudo bem. Mas, olhando em pormenor, os animais, nesse painel, caçam-se e devoram-se uns aos outros. É um paraíso terrestre, demasiado terrestre e por isso com o sabor a desmembramento, a morte, a desconstrução. Na ordem aparente da natureza existe o movimento contrário, pendular, Kali destruidora, compensadora e fonte deste equilíbrio frágil universal. Se a arte é imitação, e se os modelos são as criações ou a criação já existente, também há espaço para a descontrução, aliás como para a crítica social, para um olhar mais caótico que o próprio caos que nos rodeia, para os fantasmas e as sombras da condição humana. Claro que sim. Aquele olhar realista que nos aponta o defeito para nos lembrar a virtude, a noite para nos lembrar o dia. O problema é que, hoje, a linguagem metafórica dominou as artes plásticas. Todo este lixo contemporâneo é sempre apresentado como uma metáfora de qualquer coisa (nem na Bíblia encontramos tanta obsessão pela metáfora) e as metáforas sobrepostas, aleatórias e mal feitas acabam por desembocar numa linguagem tão esotérica que apenas o próprio artista a compreende, ou, como está na moda dizer, meia dúzia de iniciados na arte contemporânea que praticam uma espécie de esperanto artístico, sem princípio, sem origens, sem raízes, sem pai nem mãe, ou seja, uma linguagem orfã de significante e significado naquilo que uma língua pode ter de mais íntimo e sagrado. Por outro lado, é necessário saber fazer metáforas: quando não são bem feitas e não usam códigos comuns ao observador a história metafórica acaba por ser o único real. Daí que a empregada de limpeza da Tate Gallery tenha deitado fora uma peça que lhe pareceu lixo…
A metáfora abate-se sobre si própria e fica apenas o lado de fora dela, e os lírios do campo já nada têm a ver connosco, são apenas lírios no campo, não chegando esses lírios sequer ao despojamento anunciado por Alberto Caeiro, mas sim a um outro despojamento, o despojamento do olhar que nada mais vê senão uma forma no campo sem nome e sem sentido, (uma miopia semântica) ou seja, destituído de palavra, destituído de Verbo e, por consequência, de Luz. Fica-se só com a parte e deixa-se de fora o Todo. Fica-se apenas com o tempo da moda e seus humores e põe-se definitivamente de lado a eternidade. E os artistas são os bonecos de ventríloquos mudos por falta de ideias, de amor, de admiração pelo que os rodeia.
A primeira vítima desta estranha forma de criar é o próprio arquitecto ou artista. Porque está e permanece só. Só e com a sua assinatura, a sua única razão para continuar a existir. E a arte, no seu princípio, não é um acto solitário. É um diálogo permanente com Deus ou com esse outro, interior, perto da nossa alma.
Esta solidão do artista chegou a tal ponto que já foi inventado um robot pintor. É o robot que pinta, não o artista, este passou definitivamente para o lado do observador e já não tem mais função no mundo. Assim como a arquitectura, hoje impossível sem o auxílio da máquina. A mão que agarra o lápis e desenha a cúpula imita-a muito mais na perfeição, pois no mundo não há esferas perfeitas, só um computador é capaz de tal coisa. O computador imita mal a natureza, é um péssimo artista e talvez o seja por ter nascido do zero e do um e não da diversidade maravilhosa dos elementos. Quando o artista se ausenta do mundo regressamos à animalidade, e Arquitectura deixa, de novo, de existir, para nos limitarmos a ter abrigos, como as bolsas dos cangurus, sem sequer conseguirmos ver que até os pássaros possuem o impulso genético de construir um ninho, pauzinho a pauzinho. Assim nunca sairemos da proximidade do ventre…
Gilbert Durand chama-nos a atenção para a noção de “bacia semântica” e dá um exemplo para explicar esta noção: a bacia é talhada pelas ondas da maré e, por sua vez, é o relevo da bacia que vai influenciar as ondas, na sua, forma, força e frequência, e talhando estas, de novo, a bacia. Bacia e maré criam-se e recriam-se ao longo do tempo e cada uma é consequência da outra. Esta metáfora é uma metáfora arquitectónica. Ter jardins, casas cuidadas, formas que de alguma forma sejam um prolongamento da natureza tocando os céus, é termos esses jardins dentro de nós, essas casas cuidadas e essa formas no templo interior que tocam outros céus. Chegam lá por sintonia, por serem da mesma origem. O problema da criação há-de ser sempre um problema face ao sagrado. Ou se está dentro dele ou fora dele, ou se cria ou se destrói. E quando se tem dúvidas sobre de que lado se está já se é mistíco, de alguma forma…
Ou se é mais e se consegue “contemplar o céu do fundo da sarjeta”, como tão bem disse Óscar Wilde, ou se é menos e se vive nela, num submundo demasiado perto dos infernos. E aí já não há ossos nem ruínas para contemplar, apenas cinzas, esse pó que fica depois das estrelas.
Francisco de Holanda, um artista muito antigo, oferece três lições fundamentais sobre a arte e que resumem as possibilidades de se (re)criar a partir do que nos foi dado (ninguém se torna artista, nasce-se artista, daí a maldição da imposição, semelhante àquela dos reis que não escolhem ser reis).
A primeira activa a imaginação: ao criar, conhecendo o mundo, saindo de si, participando na criação pela imitação, o homem volta a si com mais conhecimento de si próprio.
A segunda activa a humildade: os dons são dádivas vindos de fontes longínquas e desconhecidas e a forma de agradecer é aperfeiçoar este mundo.
A terceira activa a curiosidade: o artista deve ser pluridisciplinar e interessar-se por muitas matérias, porque tudo neste mundo está ligado.
Se olharmos para estes princípios apontados por este homem muito antigo, vemos subitamente inscritas numa coluna de mármore as três perguntas fundamentais: Quem sou? Donde vim? Para onde vou? E não será essa a coluna vertebral de qualquer artista? A arte sem Verbo não é arte.
 

Cynthia Guimarães Taveira

domingo, 27 de junho de 2010

A Europa vista pelo sonho de Veneza

Piano pianíssimo deslizava sobre as águas a gôndola dos pensamentos. O rosa acrescentado de azul tinha o encanto da primeira névoa que, quando, depois de mortos, envolve o novo céu. Nessa barca parecida com a da morte, os pensamentos não morriam, antes formavam espirais de memórias e cheiros. Memórias dessa cidade com demasiados momentos perfeitos, demasiados momentos juntos uns aos outros, para que não se re-questionasse tudo outra vez. Não era necessário o sossego místico, o desapego ou entrega, enquanto estava deitado nessa barco. Era apenas necessário semicerrar os olhos, respirar e ser. Por isso essa barca se assemelhava a barca dos mortos. Não que atravessasse um rio para outro mundo. Limitava-se a estar sempre no mesmo mundo. Os palácios eram toda a Europa concentrada, sua história, suas convulsões e êxtases, mas disso tudo restando apenas uma presença tocando o amor pelo oriente. A água não tinha o barulho normal que costuma ter a água que bate contra o barco, depressa ascendia em melodia. Melodia rendilhada e silenciosa, trepando pela gôndola, tocando-lhe os dedos, tocando-lhe as vestes, tocando-lhe a cara, tocando-o todo e elevando-o acima da cidade. Os cheiros da fruta e das flores eram a grande Primavera oferecida ao céu. Das estrelas viam-se rosas e narcisos, gotas de orvalho frescas escorrendo pelas cerejas, e as gôndolas tornavam-se cornucópias abundantes, brotando sem fim toda a frescura suave de um canto afrutado. Veneza havia sido criada pelos sonhos do alerquim. E cada gota, cada lágrima era uma flor a abrir. Europa significa apenas memória. Memória colhida num campo de sangue. Memória em imagens de arte e sentimentos velhos. As pontes eram braços estendidos entre vizinhos odiados e amados. Europa eram muitas janelas, muitos tons, muitas músicas, flautas e pianos, lutos e festas dignas de deuses. Não eram óperas encerradas em teatros. Eram óperas de vida. Cada europeu cantava uma área no teatro vazio da sua consciência. Europa era a reviravolta da cornucópia no seu limite quando invadia o céu e ensinava os anjos a cantar. Era a austeridade da pedra e o calor da madeira, nessas voltas, tonturas, ameaças, gritos, lágrimas e esgotamentos.
A gôndola deslizava nessa cidade fantasma. Era uma memória que brotava e encarnava nas cúpulas várias, ovais, redondas, simples, discretas, abóbodas-ovos de explosão aparente mas com a contenção de quem não chora e não se excede na alegria em frente ao público. Piano, pianíssimo, a Europa passava, pelos canais, pelas sombras, pelos crimes, pelos banquetes, passava como uma rainha, deixando atrás de si a água que reflectia os rostos mascarados, em vénia, delicada, triste e digna, enquanto ela passava.

Cynthia Guimarães Taveira

sábado, 26 de junho de 2010

Finalmente traduzimo-nos.

Sempre gostei de ver documentários sobre outros povos. Acho-os tão poderosos na nossa transformação como qualquer boa religião.
Há pouco tempo vi um que me surpreendeu em particular. Falava de uma etnia que vivia perto da fronteira de Angola. Ainda preservava os seus costumes mais tradicionais mantendo isso como firme convicção. Às tantas, dei por mim a dialogar com as suas opiniões. A conversa silenciosa permaneceu o suficiente para que me questionasse sobre o facto. Porque razão estaria a prolongar frases, ou a acrescentá-las, áquela gente que eu nunca vira na vida e que é improvável alguma vez ver? Então compreendi.

Há algumas décadas, os documentários sobre etnias eram realizados como qualquer filme ligado à natureza. Um locutor ia para o meio da selva e dizia-nos "Ali estão os leões." Depois, ilustrava-nos de uma forma rápida o seu percurso instintivo. "Os leões ficam a descansar, enquanto as leoas caçam". Era apresentada então a sequência leão a descansar e leoas a caçar. Não existia tradução entre os humanos e os animais. Pertenciam à sua espécie e nós à nossa. Por alguns minutos eles tornavam-se o espectáculo que nós queríamos e conseguíamos ver.
Os outros povos eram entendidos da mesma forma. Um locutor ia para o meio de África e comentava "Aqui estão os pigmeus". Seguindo a mesma receita de ilustração, dizia "Os pigmeus entoam estranhos cânticos na altura das chuvas". Seguiam-se alguns momentos de cânticos comprovadamente estranhos. Os pigmeus eram assim outra espécie de mamíferos, cantando, caçando, indo para a floresta em busca de mel.

Mas alguns de nós, ao ouvimos aquele exotismo de palavras, sempre nos perguntámos que diabo de coisas estariam eles a cantar. Estendendo esta dúvida ao resto do seu tempo incomodava não se compreender as conversas que tinham, as zangas que mostravam (Um pigmeu fica furioso com quê?). Acabavam por ser mais impenetráveis do que leões espalhados pela savana.

O que eu compreendi com aquele documentário recente foi que a nossa televisão mudou. As palavras dos outros povos passaram a ser todas traduzidas. Agora sabemos que as mulheres se queixam do trabalho e da violência dos maridos. Ralham com eles e ameaçam-nos. Sabemos que os homens saem cedo para trabalhar, passando a vida preocupados com a saúde dos animais e com o dinheiro para comprar comida. Sabemos que as crianças recebem palavras que são palavras e são mimos, mesmo que falem de árvores e de cabras. Sabemos que há sempre uma infelicidade escondida e uma alegria eternamente teimosa nos nossos sorrisos.
Sabemos que afinal o que mudou não foi a televisão, mas sim o nosso olhar para com os outros. Somos todos humanos, onde quer que nos encontremos e qualquer que seja a língua que falamos.

Já nos traduzimos querendo isso dizer que já somos os mesmos, em embalagens diferentes.

Alexandra Pinto Rebelo

domingo, 20 de junho de 2010

Dalila Pereira da Costa. O elogio velado.

Há pessoas que pensam ser natural sabermos umas coisas sobre o mundo. No seu entendimento, já nascemos com isso. Para esses a cultura (num sentido erudito) está assim, ao nível do cabelo louro ou dos olhos castanhos. Tal como se inveja o perfil de um determinado nariz, da mesma forma se alimenta o mau sentimento em relação ao saber do outro.

Só há uns anos consegui perceber o que era a inveja. Sempre me fez confusão ser um pecado mortal. Depois, alguém suficientemente generoso explicou-me que a inveja não era só querer o que o outro tem mas desejar-lhe mal por isso. Ainda hoje, entendendo o conceito, me custa a crer que o processo seja esse. Custa, no sentido de ser tão difícil como uma revelação horrível para a qual não estamos preparados. Há pessoas que querem mal a outras muito simplesmente por estas saberem umas coisas sobre o mundo.

Quando tinha dezoito anos comprei o meu primeiro livro relacionado com esoterismo. Na escola, a propósito de Fernando Pessoa, falara-se muito do Graal. Lembro-me com uma nitidez fotográfica, aproveitando o mote pessoano de sonhos como fotografias, de passar na Avenida de Roma e ver exposto numa montra um livro pequeno cujo título era A Nau e o Graal. A autora, para mim então desconhecida, era uma tal Dalila Pereira da Costa. Entrei na loja. Quando cheguei a casa comecei a lê-lo. Ao fim de poucas frases lidas, compreendi que não conseguia entender praticamente nada do que ali estava.

Foram muitos os livros que adquiri a partir de então, irmãos na temática. Percebia alguma coisa num lado, usava esse conhecimento como instrumento de interpretação para o livro a seguir. Um sentido permaneceu constante ao longo de todo este processo. A ideia de que nenhum livro iria manter-se eternamente resistente a uma interpretação que eu pudesse fazer dele.

Passaram alguns anos até ter voltado à Nau e o Graal. Li-o e compreendi-o. Para aqueles que acreditam na alquimia com metais ou plantas, garanto que existe qualquer coisa semelhante com livros. Só ainda não foi inventada uma simbologia que o ilustre. É necessário começarmos com uma humildade de aprendizes, ter uma certeza (que nos transcende) de que ler nos leva a alguma coisa, conseguir superar as muitas dificuldades do caminho, compreender que não há morte mesmo que percebamos que morremos no fim de alguns livros (não tendo isso a haver com pieguice mas com transformação) e por último, concluirmos que o final do caminho é lermos aquilo que desconhecíamos poder ser lido e não a eles, aos livros, que, afinal constituem somente o melhor dos exercícios. Depois disto dito, que continue a invejar quem o queira fazer.

Comecei este texto por querer falar de Dalila Pereira da Costa. Acabei por dela não dizer nada. Quem sabe da alquimia dos livros reconhecerá ser este o melhor dos elogios.

Alexandra Pinto Rebelo

A descoberta do caminho afectuoso para a Índia

Conheci, há uns anos, em Malta o senhor Ropu. O início da conversa nem começou da melhor forma. Quando lhe perguntei de que país vinha, ele pediu-me para adivinhar. Como ninguém consegue saber ao certo o local de residência de cada um, pensei que ele me convidava a ler os seus traços étnicos, fazendo deles um fio que me conduzisse à sua origem.

Era evidente que se tratava de um indiano com os seus sessenta anos. Não havia dúvidas quanto a isso. O que eu não percebia era porque razão um indiano tinha decidido fazer turismo em Malta. Disse-lhe então as minhas certezas e as minhas dúvidas. O senhor Ropu ficou muito admirado. Nunca ninguém tinha conseguido perceber as suas origens indianas. Geralmente pensavam que ele era italiano. Eu respondi-lhe que para mim era óbvia a associação. Sendo eu de Portugal, de Lisboa, ainda para mais, convivendo lado a lado com tantos indianos, não me poderia enganar.

O senhor Ropu deu um passo atrás, ficou estupefacto, e desabafou para a senhora que o acompanhava: "Olha, são do país que destruiu o Oriente!".

Raramente terei tido um início de conversa tão constrangedor com alguém.

Mas, apesar de tudo, continuámos a falar nesse e nos outros dias que se seguiram. Soube que tinha nascido em Calcutá e que desde há alguns anos residia no Dubai. Falávamos nas diferenças entre o Oriente e o Ocidente. Partíamos de generalizações, comprovadas ou não nas radiografias rápidas que íamos tirando nas nossas conversas.

Certa vez, perguntou-me como era possível os europeus acreditarem num só deus. Nunca ninguém me tinha feito uma pergunta semelhante. Talvez por não estar à espera, soube imediatamente a origem da sua dúvida. Expliquei-lhe que os ingleses, tão bem conhecidos dos indianos, é que acreditavam num só deus. Os países do sul da europa era como se acreditassem em muitos. As nossas igrejas estão cheias de santos aos quais as pessoas oram. Oram a S. António, a Maria, a Santa Rita de Cássia, a S. Bento. Têm uma relação mais próxima com S. Francisco de Assis do que com Deus. Chegam perto das suas imagens e falam com eles. Falam-lhes dos seus problemas, confessam-lhes as suas alegrias. Deus não pode estar presente para todas essas coisas pequenas que formam o nosso dia a dia. Nesse momento, o senhor Ropu parou. Ficou com o olhar fixo em coisa nenhuma e exclamou: "Agora, percebo perfeitamente".

O que o senhor Ropu tinha percebido, no mesmo instante do que eu, era que nós, sul europeus e indianos tínhamos qualquer coisa, afinal, de profundamente semelhante. Tínhamos compreendido que dois sistemas religiosos tão afastados pelas catalogações eram, no fundo, tão próximos, independentemente da forma dos templos, das vestes dos crentes, dos odores particulares, das formas mais arrojadas ou sensaboronas dos deuses ou santos. Tínhamos compreendido que éramos humanos, de uma forma como nunca o tínhamos feito. Éramos da mesma espécie e, apesar de o sabermos racionalmente, nunca o tínhamos sentido.

Quando nos despedimos, o senhor Ropu confessou-me já ter ido, havia bastante tempo, a Goa. Falou-me que ele, indiano de Calcutá, sempre ficara confuso com algumas das atitudes dos goeses. Mantinham os nomes portugueses, guardavam os passaportes lusos com orgulho e muitos deles recusavam até a nacionalidade indiana depois da reintegração na Índia. Sentiam-se portugueses especiais e assim queriam permanecer. Nós sempre detestámos os ingleses, dizia. Era o invasor que tinha de ser expulso a todo o custo. Como era possível que aqueles indianos em particular tivessem aquele tipo de atitudes de afecto por conquistadores europeus? Sempre ficara com esta dúvida de resposta absolutamente inexplicável.

Agora, ao fim de tantos anos, consigo compreender o porquê, disse-me.


Alexandra Pinto Rebelo

domingo, 13 de junho de 2010

Não-contemporâneos.



Podemos partir de qualquer coisa simples como guloseimas.

Fios de pinhões e antigas medidas feitas de madeira para os amendoins e tremoços. Ao lado, as tão nossas contemporâneas gomas, cumprindo o espírito do tempo com cores garridas, açucar exposto sem timidez e aquele toque de língua estrangeira a emprestar um qualquer sabor do Outro.

Não há truque na fotografia, garanto. No entanto, parece haver. É como se um intervalo de cinquenta anos se abatesse, aproximando coisas de tempos distintos. Na lógica que utilizamos diariamente, o tempo sucede-se ao tempo. As coisas que foram já não podem ser. Neste sentido, parece que alguém se esqueceu de informar os vendedores de guloseimas de algo tão fundamental como o conceito de tempo linear. Será mau para o negócio?

Não me parece que seja. Isto leva-me a pensar numa pequena introdução que certa vez li. Tratava-se de uma obra de William Blake onde o escritor de incipit concluia: este homem não foi contemporâneo de ninguém. Esta é uma daquelas frases a que se sorri (é também por estes sorrisos que continuamos, teimosamente, a ler). Sorri-se por nunca a termos estruturado sintacticamente na nossa consciência e, no entanto, corresponder na íntegra a coisas tão intuídas há tanto tempo que, quando ganham forma lexical, são uma evidência nossa. Não nossa, em termos individuais, mas nossa em termos de espécie. Aquele homem, Blake, não foi contemporâneo de ninguém. Pegando nesta chave, podemos começar a abrir portas. Veremos que abre muitas. Também Cesário ou um certo Pessoa eram, de certa forma, não-contemporâneos de todos os que com eles partilharam o seu tempo. A arte atira quem dela se aproxima para fora do tempo comum. É um dos paralelos conhecidos entre arte e misticismo.

Continuando com a mesma chave, podemos alterá-la um pouco. E nós? Será que somos contemporâneos de nós mesmos? Claro que não. Todos nós fazemos, ou dizemos, coisas para as quais não encontramos grande uniformidade temporal. Como caracóis, uso expressões como "torre de cristal", conheço o sentido profundo de peregrinação apesar de nunca ter feito nenhuma, experimento uma forte veneração quando olho o sol -sempre num impulso mais forte do que eu. Mas escrevo na net, sim. Pelo que eu observo, também aqueles que se encontram agora por aqui (esta é uma boa expressão para substituir o termo contemporâneos) têm os mesmos desajustes temporais consigo mesmos. De tantos que são, seria cansativo enumerá-los.

Nós somos um mosaico. Mosaico composto por pequenas peças de tempos distintos. Tempos também de alguma forma influenciados por várias sensibilidades étnicas. Algumas, de tão antigas, nem nome possuem na nossa memória colectiva. Somos uma imensa pasta de várias cores fluindo constantemente. Já os nossos antepassados o eram e com eles transportavam esse mal estar por não se saberem não-contemporâneos de si próprios. Ou, pelo menos, mal estar por não o conseguirem estruturar sintacticamente na sua consciência.

Por tudo isto pasmo quando ouço falar naqueles que, por se terem cansado do mundo contemporâneo, o tentam deixar à porta de casa. Talvez estes sejam aqueles que, ao sentirem que não são contemporâneos de ninguém, se julgam, pelo menos, contemporâneos de si mesmos.
E consigam viver na ilusão de pertencerem a um único tempo completamente delimitado de todos os outros que já o foram e ainda o são...

Alexandra Pinto Rebelo