No Florilégio, antologia de milagres atribuídos a S. Francisco e aos seus, podemos perceber alguns desses milagres, ou hierofanias que aconteceram no tempo de Francisco. A maior parte, eram experiências intensas, vividas por S. Francisco, S. Clara, por um ou outro irmão. Experiências individuais, portanto. Hoje em dia reconhecemos facilmente os estados místicos que são aí descritos. Mas também existiam as hierofanias partilhadas por um grupo de monges, ou até pelos habitantes de Assis e arredores. Durante alguns anos, a comunicação entre mundos foi intensa, sendo a parte visual muito vívida e importante. Num dos episódios, Francisco visita Clara. Ambos partilham uma refeição quando, conversando sobre Deus, entram em êxtase, com os olhos e as mãos erguidos para o Céu. As pessoas de Assis, desconhecendo o que estava a acontecer, viram todo o convento e o bosque que o circundava, em chamas. "(...) parecia-lhes que um único braseiro ocupava a praça, a igreja, o convento e o bosque." Acorrem todos ao local, na tentativa de apagar o fogo. Quando chegam, vêem apenas Francisco, Clara e os companheiros em êxtase, tendo concluído que se tratava de fogo divino. São inúmeros os exemplos da importância do olhar, em Assis. As hierofanias desenvolviam-se num tecido inseparável de imagem e palavra. Outro exemplo, é o célebre sermão de S. António aos peixes que António Vieira, como bom barroco, construtor de olhares, irá aproveitar para o seu texto. Peixes juntos a outros peixes, escutando um monge que com eles fala, é uma imagem forte que dificilmente se esquece.
Ao contrário do que se pode supor, estes monges, visitados regularmente por anjos e demónios, não se fecham em contemplação. São pessoas de acção. Fazem igrejas, são peregrinos, dão sermões ilustrativos à porta das igrejas.
Assis representa uma nova forma de ser-se cristão. A acreditar-se nos fenómenos místicos, Assis representa, ao mesmo tempo, uma nova forma de comunicação, mais intensa, mais frequente, mais agitada, mais orientada para o visual e para a palavra simples, longe dos grandes tratados filosóficos e do peso teórico de Roma e Bizâncio, longe da grandes revelações divinas, daquelas que faziam livros acabados e, logo, problemáticos.
O quadro acima apresentado é de 1235, do pintor Berlinghieri. Foi feito poucos anos após a morte de Francisco. Obedece a um programa estético bizantino, onde o símbolo é o mais importante na representação. Muito haveria a dizer sobre isto. Quem conhece um pouco a história de Assis compreende que este tipo de representação não coincidia em nada com aquilo que se tinha passado, com aquilo que importava deixar documentado. O fundo dourado, por exemplo, surgia como uma espécie de pano de fundo, de cortina, eliminando todos os conceitos de espaço e tempo, dando um valor mais sagrado à coisa representada. Isso não servia para Assis. Era quase a sua anulação. Aos monges importava-lhes afirmar “foi aqui e agora que isto aconteceu”. Da mesma forma, o desenho austero das figuras, apelando a uma imobilidade simbólica, não se coadunava com a agitação franciscana. Roger Bacon traçará o novo programa estético da Ordem. As suas indicações para a “pintura do natural” constituirá a grande proposta do Renascimento e barroco até à perfeição de Caravaggio.
Giotto será o primeiro a figurar os acontecimentos de Assis. Serve-se da figuração tridimensional, utiliza os gestos correntes, o desenho da arquitectura de uma cidade do séc. XIII e XVI de Itália. Subitamente a pintura é projectada para a vida quotidiana tal como o fora todo o mundo divino.
Alexandra Pinto Rebelo
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